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Vilipêndio

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15 de Setembro, 2021

O Qanon chegou cá

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Getty Images

Quando há dois anos, numa noite aborrecida em casa, me passeava por essa coisa chamada Twitter - algo que, depois de muita resistência, lá decidi começar a usar de forma muito moderada - deparei-me com um número impressionante de contas, principalmente americanas e brasileiras, cuja narrativa era apenas uma: a de que existe uma cabala enorme de elites de esquerda que se alimenta de criancinhas, tira-lhes o sangue e trafica-as por todo o mundo, cabala essa que é suportada pelos milionários Bill Gates e George Soros e a única esperança da humanidade reside em lideres como Trump, cujo objectivo é o de salvar o mundo e as criancinhas.

Demorei semanas a perceber o que acabei de escrever no parágrafo anterior. É bizarro demais, surreal a um ponto que ultrapassa a lógica. Ao início, achei piada. Chalupas do Twitter animam qualquer um e como não nos rirmos de gente que acha que Trump e Bolsonaro são enviados de Deus e que vêm salvar o mundo e limpá-lo desta gigantesca cabala?

Fui acompanhando nos meses seguintes a evolução desta alucinação maciça chamada Qanon. A piada começou a dissipar-se e começou a instalar-se em mim uma inquietude. Na mesma altura em que o FBI considerou o Qanon como uma ameaça à segurança nacional, as coisas começaram a mudar e mais gente se começou a aperceber dos efeitos nefastos que a queda nestes buracos escuros têm em muita gente. 

Teorias da conspiração são coisas tão antigas quanto o Homem, existem há séculos. Contudo, algo diferente se passava com este Qanon. Para além de, ao longo destes séculos todos, não haver plataformas digitais que permitiam o aglomerar de milhares de pessoas com visões semelhantes, a força que estavam a conseguir ganhar através dessas plataformas começou a tornar-se algo sério.

Há sempre um maluco em qualquer bar que diz que "isto é tudo uma cabala" e que "o 11 de setembro foi obra do Bush" e que "os políticos estão todos a enganar-nos". O problema hoje é que, com a Internet, podemos ter bares com 15 mil pessoas juntas no mesmo grupo. A alimentar-se mutuamente, horas seguidas por dia, todos os dias. A fazer crescer tudo isto, de forma exponencial.

Tinha razão em ficar preocupado com este fenómeno. Nos EUA, a alucinação atingiu niveis demenciais, com a invasão do Capitólio como apogeu. No Brasil, Bolsonaro continua a ser - para um número enorme de pessoas - o salvador de tudo, a imprensa o alvo a abater e a "Igreja" a matriz a defender.

E, agora, o Qanon chegou a Portugal. Importamos tanta coisa que também teríamos que importar chalupice. Ainda assim, diga-se, em defesa pátria, que esta chalupice já chegou a todo o mundo, da Alemanha à Austrália. Teria que nos calhar a nós, é esse o poder imenso da Internet.

Esta semana, depois de ver o que aconteceu a Ferro Rodrigues enquanto almoçava num restaurante com a mulher, o que senti foi um medo enorme. O medo do que esta gente pode fazer. E eles têm força. Tem pessoas, e isso faz a diferença toda. Todas elas parecem saídas de um ala psiquiátrica, parecem passar 20h por dia agarradas ao facebook e ao youtube, a fazerem a "sua pesquisa".

Não há como não achar que isto irá descambar para algo grave. Por trás do Qanon, há gente violenta, há sentimentos anti-sistema que são perigosíssimos, os ataques a jornalistas e cientistas são um dos princípios unificadores deste cada vez maior e mais complexo movimento. Basta ir à pagina de facebook do juíz Rui Castro para perceber que não é seguido por dez maluquinhos. São mais e serão cada vez mais. Nessa mesma página, através dos comentários, percebe-se rapidamente a obsessão por assuntos como a pedofilia, lê-se ataques violentos à comunicação social e a todos os intervenientes políticos, a vontade cega por um mudança total do sistema. Uma raiva constante, um odio imenso, a tudo, desde as vacinas aos corruptos, das elites de esquerda à imprensa. Tudo isto cheira a algo mais que uma mera conspiração e começa assustadoramente a parecer-se a um ataque real à democracia. Nomeadamente, quando a alucinação deixa de ser apenas online e passa para a vida real, como sentiu Ferro Rodrigues esta semana. 

Tudo isto é tremendamente perigoso. Estas pessoas são contra todos os pilares das nossas sociedades, querem destruir a nossa forma de vida, querem ser os políticos, os cientistas, os tribunais, porque se acham mais informados que todos eles. Querem retirar todos os intervenientes eleitos, atacar as bases fundadoras da nossa democracia e querem instaurar uma pseudo-ditadura onde o seu líder seja incontestado, um homem viril, branco e que vai acabar com toda a podridão no país, no mundo, no Sistema Solar. Seja um Trump ou um Rui Castro, seja o que for, é para pô-lo lá. Pelas criancinhas.

Estas pessoas sentem-se enganadas e, quando assim é, acabam muitas vezes a recorrer à violência. Já não são só negacionistas, são muito mais que isso. São fascistas mascarados de lutadores pela liberdade, são anarcas com a falsa apologia da ordem e do respeito, são analfabetos com a mania que são cientistas, são investigadores de WC que acham que descobrem a verdade toda do mundo que nos escapou a todos nós, os restantes sete biliões de almas neste planeta.

São pessoas doentes. Pessoas frustradas na sua vida, enganadas quiçá por todos, que a vida não tratou bem. O aparecimento de plataformas como o facebook deram um sentido à vida destas pessoas, o sentido de descobrir uma verdade que não existe. Deu-lhes o conforto de pertencer a um grupo de pessoas iluminadas.

Entretanto, com a pandemia e o crescimento de movimentos resistentes a todas as medidas de mitigação do vírus, todo este movimento foi invadido por extremas-direitas, neonazis, por gente violenta e extremista. Quem acompanha tudo isto há algum tempo sabe bem a estreita ligação que existe entre grupos de extrema-direita e esta pseudo preocupação com as criancinhas. É tudo uma fachada para algo mais sério, mais grave e totalmente antidemocrático.

Estejamos atentos. O que parecem ser chalupas hoje, amanhã são os que queimam livros e matam jornalistas.

Isto vai dar merda e eu avisei.