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Vilipêndio

Vilipêndio

03 de Janeiro, 2021

O melhor de 2020

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Agora que o ano mudou, que o zero passou a um e que 2020 se tornou 2021, é hora de fazer balanços.

Podia dizer que o melhor que 2020 trouxe foi o seu acabar mas isso era demasiado óbvio. Em 365 dias houve muita coisa e se houve ano preenchido de histórias, acontecimentos, foi este que agora acabou.

2020 foi um ano chave, histórico, um daqueles anos que se pode orgulhar de ir parar aos livros de História do futuro e que irá ser objecto de estudo por parte de meninos e graúdos em escolas e universidades.

Mas, como em todos os anos, não deixei de ler os meus livros, ver as minhas séries e ler as minhas notícias. Por isso, e como vivemos na era das opiniões para todos os gostos, deixo aqui o que de melhor me passou pelas vistas:

MELHOR LIVRO:

Autismo (Valério Romão, Abysmo, 2012)

Dos 8 livros que li este ano (menos que o costume, mas 2020 foi ano de tudo de pernas para o ar) este foi, certamente o que mais me marcou.

Autismo é um relato dolorosamente real e tremendamente humano de um casal que tenta criar o seu filho autista e tenta, ao mesmo tempo, lutar pela sua própria felicidade e pelos seus sonhos. É um livro com capítulos e passagens que me deixaram atónito, com o ar preso nos pulmões, frases e diálogos que nos fazem pousar o livro durante uns segundos e pensar na nossa própria existência. É um livro que, em certa medida, nos ridiculariza. A nós e aos mil e um problemas que vamos arranjando na nossa vida sem que tenhamos noção de muitos outros que não sofremos e que são de um nível infinitamente mais doloroso, inexplicável e revoltante.

A brilhante escrita de Valério Romão (que, admito, desconhecia) tornou-me, logo à segunda página, um fã. Valério junta uma eloquência descritiva soberba com um discurso coloquial de uma forma bastante pertinente. Há passagens neste livro que parecem relatos reais de diálogos e não apenas diálogos, ficcionados e imaginados.

Este é um livro real, demasiado real. E maravilhosamente bem escrito.

MELHOR SÉRIE:

The Comey Rule, com Jeff Daniels e Brendan Gleeson

2020 não foi um ano repleto de boas séries. Ou assim foi, pelo menos, para mim. 

Jeff Daniels interpreta o antigo Director do FBI, James Comey, numa mini-série da Showtime que retrata os momentos antes da eleição de Donald Trump em 2016 e os meses imediatamente a seguir. Não entrando em pormenores políticos nesta análise, resta-me apenas elogiar as interpretações tanto de Daniels como de Gleeson (que dá corpo a um Trump vil, abjecto, ditatorial, entre cem outros objectivos) e a mensagem que consegue passar daquilo que foi o terramoto Trump. A partir do momento em que entra na Casa Branca, as institiuições e a própria democracia americana passam para segundo plano. Para Trump interessa apenas uma coisa, coisa essa que Comey, por colocar a instituição FBI e a democracia acima de tudo, não lhe consegue dar: lealdade máxima e incondicional.

Uma série que assusta porque consegue transmitir fielmente aquilo que estes novos populistas trazem às nossas democracias: uma podridão indescritível.

 

MELHOR NOTÍCIA:

Papa defende união civil de homossexuais e critica discriminação

Esta, na minha opinião, foi a notícia mais positiva no annus horribilis que acabou. O facto do líder da Igreja Católica ter tomado este passo, infelizmente, não significa que toda a Igreja esteja no caminho do progresso nem que a luta pelos direitos dos homossexuais seja história do passado. Infelizmente, nada disso é verdade. Contudo, o (gigante) passo que Francisco deu ao anunciar o seu apoio à união civil homossexual é de louvar e de nos deixar com um calor reconfortante, mais ainda numa época em que assistimos ao renascer de ideais ultraconservadores e em que muitos políticos e partidos do Ocidente se apoiam em retóricas racistas, xenófobas, machistas e, também, homofóbicas.

O Papa Francisco é, de facto, uma luz no túnel escuro que é a Igreja Católia. É a prova que a Igreja não tem necessariamente de permanecer congelada no passado para manter a sua mensagem e valores centrais. A Igreja pode (e deve) adaptar-se aos tempos em que se encontra, para não correr o risco de, daqui a umas gerações, ver-se quase desaparecer ou tornar-se insignificante e apenas representativa de uma franja das sociedades.

 

MELHOR IMAGEM:

Foto de Angelos Tzortzinis - AFP -  Getty Images

Esta foto de uma criança no campo de refugiados em Moria, tirada após a polícia ter disparado gás lacrimogéneo contra um grupo de refugiados que se manifestava contra o novo campo a ser construído após a quase total destruição do anterior pelo fogo, mostra várias coisas, todas elas difíceis de lidar. Mostra, acima de tudo, que as nossas preocupações andam muito longe um dos outros. Uma criança não pode chorar desta forma. Uma criança não pode sentir nada do que este rapazinho sentia neste momento. Uma criança não pode passar por nada do que ele - e todos os outros - já passaram. Esta realidade já não é no longínquo Médio Oriente ou na Coreia do Norte. É às portas da Europa. 

Num ano em que vimos o melhor que podemos fazer uns pelos outros, também nos apercebemos mais visivelmente do mal que podemos fazer uns aos outros, por escolhermos ignorar, por decidirmos que aquilo que acontece fora do nosso bairro, do nosso quintal, das nossas vistas, não tem de ser preocupação nossa. As terríveis consequências que resultam deste nosso crescente umbiguismo estão à vista de todos.

 

Mas que venha 2021 e o seu novo aroma. Enquanto o pudermos sentir - ao aroma - é bom: ele pode não durar muito tempo. Seja por percebermos que pouco ou nada muda quando Dezembro passa a Janeiro ou então porque o raio do Covid nos levou o cheiro.

Bom ano a todos os blogueiros do Sapo, um bem haja e continuem a escrever!