O erro da esquerda
Nuno Veiga / LUSA
Se seguir os caminhos normais, as nomenclaturas corriqueiras, se tiver em conta ambos os lados de uma barricada imaginária, diria que desde cedo sei que sou de esquerda. Mesmo que seja esquerda de nada.
Alinho-me à esquerda como me alinho para o Benfica, para séries de crimes e para uma bela dourada grelhada.
Mas se lados temos de escolher, o meu está escolhido. Num momento em que parece que do outro lado da barricada, o lado da direita, existe um progressivo desvio ainda mais para a direita, as vozes que se levantam são cada vez mais e mais altas.
E, portanto, agora é contra Ventura, marchar, marchar.
É a isto que se irá propôr, em princípio, qualquer pessoa que, mesmo não se autoidentificando como 'de esquerda', é um ser humano decente, respeitador do próximo e defensor dos ideais de democracia e igualdade.
Mas é importante não cometer um erro grave quando se discute a ascensão dos populismos de extrema direita e das suas perigosas ligações a personagens de áreas pouco saudáveis da nossa sociedade.
O erro consiste em achar que não assentam num pequena base de verdade. É ignorar que, por trás do manto de raiva e ódio, existem motivos reais. O fundamento para o voto de raiva em Ventura é consequência de um desgaste enorme com os casos Sócrates, Ricardo Salgado, BES, TAP, entre outros - inclusivé, o muito badalado assunto da comunidade cigana, assunto que toda a esquerda (e a nossa sociedade no geral) decidiu ignorar ao longo de anos por não saber ouvir os problemas das pessoas reais e o qual dá a ganhar imensos votos a Ventura, porque não tem que ser tabu que existem, em determinados pontos do país, problemas sérios entre a comunidade cigana e o resto da população. Não discriminar não significa não criticar. E foi isso que o Chega soube fazer de forma bastante inteligente e brejeira.
O populismo não nasce do ar, não se abrem cabeças a pessoas e se lhes põem lá dentro ideais racistas ou xenófobos. O populismo ganha força exactamente por ouvir as dores de uma parte significativa da população, mesmo de uma população que não se identifica totalmente com os ideias da extrema direita. O que faz a seguir é distorcer muita da realidade e oferecer uma salvação para todo esse desastre - ou para acabar com a escumalha, como diria Ventura. E a solução recai numa só pessoa, nesse culto de personalidade que se está a tornar o seu partido.
Será um erro ignorar que há muita coisa errada neste país. Como terrível exemplo, vemos hoje, no trágico e anunciado auge de uma pandemia, que somos dos países com menor número de camas de Cuidados Intensivos per capita na Europa.
Podia-se fazer muito melhor em muitos sítios, a corrupção existe e não deve ser tabu, e cada vez mais gente acha que se brinca com o seu dinheiro, com o dinheiro que todos os meses desconta do seu já parco salário para o Estado.
Ignorar tudo isso será oferecer votos a André Ventura.