"Nova" vaga
A recente vaga de violência contra profissionais de saúde não é, antes de tudo, uma vaga e muito menos é recente. É o que sempre foi, não é por agora se fazer escândalo e últimas-horas! de tudo que passam a existir vagas.
Sou profissional de saúde e até sei do que falo. Trabalho numa Urgência Central, essas novas casas de horrores. Nunca levei no osso, andou lá perto, mas já vi levarem no osso, isso é certo.
Isto é tanto um problema como uma vaga. Não é.
É um pormenor, um detalhão que nos define e, para o destruir, não haverá Martas Temidos suficientes, reportagens especiais que cheguem e análises detalhadas que façam o trabalho.
Trabalhando onde trabalho, sou espectador de situações-limite. No limite da capacidade de sofrimento humana e no limite da sua estupidez, também.
Se há quem nos tente dar dinheiro por fazermos bem o nosso trabalho, muitos há, na mesma proporção, que nos queiram arrear com uma cadeira porque apenas conseguimos fazer o nosso trabalho. Se há quem nos queira dar beijinhos, há quem nos queira dar murros. Muitas vezes sem nada mudar nos entretantos de ambos. É assim a espécie humana. É assim, muito particularmente, a espécice lusitana.
Há uns dias, quando estavam perto de uma centena de pessoas em espera para serem vistas, uma senhora no corredor dizia, a peito aberto para se ouvir bem, que estavam todos sentados lá dentro a descansar a fazer figura de parvo de quem esperava, lá fora. Claro que não havia nada disso, era alguém que, no seu compreensível aborrecimento por um serviço que funciona pessimamente, decidiu dedicar o que lhe restava de energia a criticar aqueles que faziam o seu trabalho, em condições inaceitáveis, para que ela fosse uma das próximas a ser vistas.
Quis-lhe perguntar se dedicava a mesma energia no dia de votar. Ou se, à noite, se dedicava, também, a ver notícias e a ler jornais. Pelos números da abstenção, e dada a audiência das novelas, é tão fácil como doloroso prever.
Que haja, nestas situações, por vezes, tareia metida ao barulho, não surpreende ninguém. Não deve acontecer mais do que noutros sítios neste país. Também há uns dias, vi no Pingo Doce uma senhora insultar uma miúda de 20 anos que estava na caixa porque a zona de congelados era a "mais suja que alguma vez vi". A uma miúda que nada tinha a ver com isso, que estava a uns 100 metros dos congelados e que, para além disso, estava claramente no início do seu trabalho.
A estupidez não é uma vaga. Existe e sempre existiu. Por cá, continua só a existir mais do que noutros sítios. Enquanto assim formos, por muito que a medicina evolua, para a estupidez humana continuará a não haver remédio.