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Vilipêndio

Vilipêndio

30 de Setembro, 2020

Eu sou mais iluminado do que tu

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Ilustração Shut Up de Christophe Marques @ not_from_

 

Ontem houve debate presidencial nos Estados Unidos. Tal como se esperava, foi uma triste imagem daquilo que se tornou a política por lá. De baixo tom, baixo nível, sem visão política, estratégica, nacional ou internacional, sem visão de nada. 

Mas como não faltarão linhas escritas sobre esta espécie de debate, decidi escrever sobre o mesmo assunto mas de outro ponto de vista. Mesmo que não pareça o mesmo assunto. O trumpismo, e as suas crescentes raízes pelo mundo, demonstra-se das mais variadas formas.

Também ontem, e tal como na maioria dos dias, ao sair de casa, passei pelo café aqui da rua, para pôr as conversas e as cafeínas em dia. 

O senhor é um senhor simpático, com os seus quarentas, um filho pequeno e que sabe receber o seu cliente. É um homem falador, cheio de ideias para o seu negócio e para o dos demais. É um homem interessante de se trocar umas palavras. 

Mas ontem. Ontem, ao falar da pandemia e à boleia de um "pensamento" postado na Internet por um seu conhecido, ele disse aquilo que parecia já querer dizer há algum tempo: "isto do Covid parece-me o maior embuste do século XXI."

Por saber que sou técnico de Cardiopneumologia, rapidamente fez questão de dizer que eu "lá hei de saber mais do que ele sobre isso". Eu também diria que sim. Ele sabe fazer uns pratos deliciosos e fazer render o seu café, coisa para a qual não tenho aptidão nenhuma, e eu hei de saber mais de vírus respiratórios que ele, em princípio.

O que é certo é que a seguir a isso decidiu continuar a expôr a sua opinião. Ou os seus "pensamentos". Porque é este o mundo em que vivemos, neste facebook em tempo real. Mesmo que, porventura, não tenha as melhores fontes de informação deste mundo e que, tal como ele admitiu, não seja o maior especialista nestas coisas de vírus.

O clímax deste seu "pensamento" chegou quando ele decidiu partilhar os lideres mundiais que, para ele, melhor souberam lidar com o Covid-19. Admito, à partida, que me deleito sempre que alguém diz algo como "Eu não gosto do Trump e do Bolsonaro, mas....". E foi isso precisamente que ele fez. Foi precisamente por aí que ele foi. Colocou um mas à frente de uma frase que devia ser terminada logo ali à nascença.

E mesmo na certeza dele não gostar nada de ambas as personagens, eles é que tiveram bem nisto tudo.

Ao longo desta interessante conversa, fui deixando apontamentos de coisas que me estavam agarradas à língua, prontas a sair como armas afiadas.

"Mas olhe que isto é bem mais contagioso do que a gripe."

"Os médicos em Itália e Espanha tiveram que escolher entre quem sobrevivia e não sobrevivia".

"Os serviços de saúde têm uma capacidade máxima, não é infinita".

"Os efeitos a longo termo não são iguais aos da gripe comum".

Tudo coisas bastante técnicas, difíceis de alcançar, palavreado científico estranho e, por isso, de duvidar. Pouco caso fez de todas estas observações. Havia todo um manancial de opiniões que ele tinha que dar sobre este assunto.

Se é científico, complexo e vai contra aquilo que eu acho, é provável que seja mentira. É assim que se pensa agora. O anti-intelectualismo que Asimov previu está aí, agora em todo o seu esplendor. Não só na América do Trump. O mundo, desde que vivemos todos com um rectângulo mágico no bolso, passou a ser uno, passou a ser conjuntos de imitações distintas de um mesmo quadro. 

Todos desconfiam do conhecimento estabelecido, a desconfiança é quase uma forma de demonstração de inteligência, de uma inteligência superior ao do outro. Duvida-se de coisas tão factuais como impossíveis de negar, mas assim é. Assim é o mundo em que a ciência é uma opinião. Assim é o mundo em que um inteligente dono de café numa rua perdida de Sintra se sente no direito de desconfiar de tudo, pôr tudo em questão, desde o canal de notícias que tem sempre ligado no seu estabelecimento ao Presidente da República, passando pela Organização Mundial de Saúde e toda essa cambada de mentirosos e gatunos.

Faz lembrar alguém, não é?

Assim como Biden no grande palco do debate presidencial, também eu ali me vi a falar com alguém que parecia um miúdo birrento, o qual já tinha formado a sua opinião e nada o poderia demover dela. Parecemos todos enfiados em conversas absurdas, tentando escapar de toda a torrente de conspirações à volta de tudo.

Tal como Trump e o dono do café aqui da rua, muita gente devia calar-se. Mas não se calam. Cada vez falam mais, cada vez sabem mais, cada vez são mais espertos, mais astutos, mais iluminados. O que pode vir daqui, para o futuro do nosso país mas, acima de tudo, da verdade e da ciência, será certamente interessante de ver.

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