Esta farsa Justiça
FOTO EXPRESSO / D.R.
Ontem, sexta-feira dia 9 de abril de 2021, dois mil e trinta e três dias depois da detenção de José Sócrates no aeroporto de Lisboa, vimos cair por terra as acusações de corrupção das quais, entre outros, o antigo primeiro-ministro era acusado pelo Ministério Público.
Ontem foi o dia da anunciada morte da Justiça portuguesa.
Depois de mais de um ano em que vimos pessoas morrerem em hospitais cheios, em que milhares de pessoas perderam os seus negócios e o seu sustento, em que perdemos liberdades em prol do bem-comum e da saúde pública, vimos agora como a Justiça continua a ser uma piada neste país e como, realmente, quem rouba cem euros é ladrão e quem rouba um milhão é esperto.
Muito já se escreveu sobre a deliberação do juíz de instrução Ivo Rosa e muito mais irá, certamente, ser escrito nos tempos vindouros. Eu tentei não o fazer, juro, porque estou farto deste processo, estou farto de José Sócrates, de Vara e Granadeiro, estou farto de Ricardo Salgado e de todos estes insidiosos cancros que se apoderaram dos quadros mais importantes do poder político e económico do nosso país.
Sei, também, que vivemos uma era em que toda a gente parece ser especialista em quase tudo. Tenho tentado, a muito custo, não fazer o mesmo, até porque me tem faltado tempo para tirar todos os cursos e doutoramentos que, subitamente, parece que 90% das pessoas têm.
Não sou juíz, não sou sequer minimamente especialista em processos judiciais, muito menos destes chamados mega-processos. Não estou, sequer, por dentro de toda a prova e de toda a acusação, não tive acesso às mais de seis mil (!) páginas do processo. O que sei (e não tenho qualquer pudor em dizê-lo) é o que toda a gente sabe.
Mas é preciso escrever sobre isto.
Muito se foi sabendo, ao longo destes anos todos. Sócrates passou quase a ser uma anedota. E por mais que não seja especialista, qualquer pessoa minimamente atenta consegue entender que, no mínimo dos mínimos, José Sócrates mostrou uma abismal falta de respeito e de ética para com o cargo para o qual foi eleito e que representa um dos pontos mais baixos da história da nossa democracia.
E isso já não é pouca coisa.
Mas muitos viam esta Operação Marquês, um dos maiores (se não o maior) processo judicial da nossa história, como um possível marco histórico no século XXI português. Um momento de singular importância e de viragem. Um momento em que, finalmente, a política era vergada pelo poder imparcial e cego da justiça e em que os Donos Disto Tudo eram confrontados com os seus mais vis actos.
Muitos acreditavam que seria uma oportunidade para o país dar um passo em frente no combate à sistémica corrupção que o corrói há anos. Os mesmos, quiçá, que criam que esta pandemia iria trazer o que há de bom em nós ao de cima, que nos ia fazer evoluir globalmente como sociedade.
E tal como com a pandemia, estavam errados.
Todo este processo tornou-se um verdadeiro circo e a imagem perfeita do nosso país e da nossa Justiça, que mostrou estar terrivelmente doente, retrógrada e disfuncional. Por um lado, José Sócrates consegue chegar a esta fase com a possibilidade real de interpôr junto do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos uma queixa contra o Estado pela forma absurdamente demorada como foi preso sem acusação, por outro lado, a Justiça deixa José Sócrates, o primeiro-ministro no mundo mais preocupado com fotocópias, livre de responder pelo crime de corrupção. E isso é uma facada gigante na credibilidade do sistema judicial, uma que obriga a repensar todo o sistema de início ao fim.
Não é, de todo, difícil perceber quem ganhará com isto. Os sentimentos anti-sistema que nasceram há anos e que se agudizaram com o advento deste processo e das suas mil e uma particularidades só podem sair engrandecidos.
André Ventura e o seu populismo barato ficam a ganhar e quase me apetece dizer-te, a ti Portugal, que mereces isso.
A Justiça é o maior e mais central pilar deste cada vez mais frágil sistema chamado democracia. Por cá, esse pilar parece estar a ruir.
Ilustração de Christophe Marques @ not_from_