As grandes realizações da pandemia
Ilustração de Ritika Bohra (@www.downtoearth.org.in)
Quando no início de 2020 se começou a falar de um vírus que fora descoberto em Wuhan, na China, poucos – se é que alguém - antecipariam o que aí vinha. Estamos em Agosto de 2021 e a Covid-19 continua a ser um dos assuntos mais prementes no nosso dia-a-dia, seja entre conversas ocasionais ou nos muitos meios de comunicação, digitais e não digitais, nas notícias e feeds dessas televisões e smartphones.
Fenómenos globais como este são eventos raros, a última pandemia da escala desta tinha sido há mais de 100 anos, quando o vírus da Influenza H1N1 provocou largas dezenas de milhões de mortes por todo o planeta naquela que ficou conhecida como a Gripe Espanhola.
De lá para cá, tanta coisa mudou no nosso mundo e nas nossas vidas que elencar as diferenças seria absurdo. Cem anos mudaram quase tudo nas nossas vidas e sociedades.
Poucos ou nenhuns dos sete biliões de seres humanos vivos atualmente passaram pela pandemia do início do século XX, é um passado tão longínquo que ficou lá para trás.
Mas, hoje, passados 18 meses de pandemia, podemos afirmar com algum grau de certeza que não mudou tudo. De todas as alterações à nossa vida, dos confinamentos aos distanciamentos, do encerramento de bares, discotecas, restaurantes, a todas as medidas, números, mortes e infectados houve coisas que se mantiveram inalteradas entre um século e o outro. Todas essas coisas têm a ver com algo que, nestes cem anos, foi quiçá aquilo que menos mudou: nós, humanos.
Podemos andar em carros e aviões, podemos ter um smartphone que nos coloca o mundo todo na palma da mão, podemos mandar vir livros da internet enquanto mandamos vir comida para casa, mas continuamos, em boa medida, a ser iguais ao que éramos nesses idos anos de 1900 e pouco.
Sou profissional de saúde num hospital central em Lisboa e, nos últimos meses, um acontecimento marcou-me mais do que todos os outros. Ao regressar de um turno, em Janeiro e em pleno pico de doentes internados covid e de mortes diárias, dirigi-me ao café perto da minha casa para ir buscar o pão e o salgado do dia. O dono, um homem simpático mas que parece cada vez mais zangado e frustrado, recebe-me com um bom dia algo seco. Imediatamente decide mostrar-me - porque é na partilha que está a validação do facto - um vídeo que circulava pelo facebook e que um primo partilhara com ele. Nele, um youtuber tornado especialista em tudo, afirmava, entre outras coisas, que os doentes que estavam nos hospitais eram, na verdade, bonecos para enganar as massas e que os profissionais de saúde ganhavam uma batelada de dinheiro com cada turno que faziam. Sem saber a minha profissão - por algum motivo nunca confiei nele a cem por cento -, mostrava-me o vídeo com um ódio nos olhos que os faziam quase saltar da cara, e sem saber também, aquele momento tornou-se para mim uma coisa que o dono do café nunca poderá perceber. Não consegui nem acabar de ver o vídeo, passando a fase de incredulidade apenas ficou um enorme insulto, e esse insulto era insuportável. A falta de respeito que senti ser-me esbofeteada na cara e a raiva que senti por todos os doentes que tinha visto naquele turno da noite a morrer - e que nao eram bonecos mas pais e mães de alguém - e pelo caos que vi instalado num hospital que nunca passara por tão grande teste são totalmente indescritíveis. Pareceu-me, naquele instante, que ele vivia num planeta que não o meu, a sua realidade e a minha não eram a mesma coisa. Já não era uma questão de gostos e preferências, opiniões e contra-opiniões. Não, naquele momento era a verdade que não era a mesma.
Somos habituados a ouvir, desde crianças, que há pessoas boas e pessoas más. Habituamo-nos, desde cedo, a aceitar o facto de que nem todas as pessoas têm os nossos valores, que há quem espezinhe outros a seu bel-prazer, que há quem critique e odeie gratuitamente, que há pessoas verdadeiramente egoístas, mal intencionadas e com as quais devemos, acima de tudo, manter a distância. Na maior parte do tempo, tudo isto é incrivelmente fácil de lidar e as sociedades vivem bem tendo, dentro delas, tão distintas formas de viver e ver a vida. Contudo, uma pandemia muda muita coisa. Uma pandemia é um teste a tantos e tão variados níveis das nossas vidas. Um vírus, algo invisível, obriga-nos a remar para o mesmo lado em muitos assuntos. Como ficou provado, isso é impossível.
As grandes realizações desta pandemia residem em dois factos: a de que é impossível nos unirmos com o mesmo objectivo - as alterações climáticas são outro exemplo disso - e que a desconfiança perante as autoridades e os meios de comunicação atingiu o seu auge. O egocentrismo que as nossas sociedades tão bem têm nutrido, seja pelo narcisismo crescente nas redes sociais ou pelo auto-centrismo imposto pela competitividade de uma sociedade capitalista, levaram a que, num momento como este, parte das pessoas, em Portugal e em todo o mundo, dessem um passo atrás e questionassem o porquê das restrições à nossa vida, o porquê de termos de pensar nos hospitais e nos idosos, o porquê de quase tudo. Quando foi pedido, não por youtubers mas pelas autoridades de saúde de todo o mundo, que tomássemos uma vacina porque é o único método que dispômos de mitigação do vírus e de salvar – com isso – milhares de vidas, muita gente não conseguiu tomar essa decisão. Felizmente em Portugal esse número não foi tão grande como noutros países. Contudo, os sentimentos de hipocondria, auto-preservação, obsessão, conspirações estão lá. O que aconteceu em Odivelas com Gouveia e Melo é revelador de como parte das pessoas que vivem nas nossas ruas e nas nossas cidades, estão a viver num mundo diferente do nosso, não conseguem aceitar factos que para muitos de nós são óbvios e fáceis de aceitar. Vivem numa realidade onde o seu eu é imensamente mais importante que o bem-estar do outro. Isto é, de todos nós.
A desconfiança de todos os meios de comunicação principais, as autoridades políticas e as de saúde pública foram a gasolina por cima de todo esse fogo. O perigo desse fogo é mais do que visível, leva a momentos de enorme tensão e violência. Quando as pessoas se sentem enganadas, tornam-se outra coisa. As redes sociais, ao criarem câmaras de eco e grupos organizados de pessoas, alimentaram esta negação dos factos veiculados pelos media e pelas autoridades.
É indissociável de todo este fenómeno a raiva e a dor causadas por perdas económicas muito grandes de alguns comerciantes e profissionais de outras áreas. Contudo, isso não justifica tudo (são muitos os que não perderam salário e ainda assim são contra as medidas e a vacinação e tudo o resto) e em algumas dessas pessoas fica a ideia que, em qualquer circunstância que estivessem, iriam sempre descambar para um mundo alternativo de factos e uma realidade tóxica e egoísta.
Nada me tira da cabeça a imensa ironia que todos os dias assistimos no hospital. A ironia de pessoas que, conscientes, decidem abdicar da vacina e, depois de contraírem o vírus, inconscientes ou em coma, passam a estar totalmente nas nossas mãos, nas mãos da ciência da qual antes desconfiavam e cuja ajuda não aceitaram em primeiro lugar. A ironia disto é enorme mas a tristeza subjacente é ainda maior.
Teremos todos que viver em conjunto, como já percebemos, e isso revela-se uma tarefa bastante árdua em momentos em que devíamos olhar uns para os outros e ajudarmo-nos de todas as formas que pudermos.