A normalização da tragédia
Vivemos num mundo onde, à distancia de um clique, temos acesso a toda a informação de forma instantânea. Vivemos num mundo em que é impossível não saber de notícias, não conhecer as mais recentes actualizações sobre todos os assuntos.
Passamos dias a fazer scroll por stories, reels, feeds, murais, páginas e mais páginas cheias de tudo.
Contudo, torna-se cada vez mais claro que estamos a ficar mais alienados. Entre nós mesmos e o mundo que nos rodeia.
O recente naufrágio ao largo da costa da Grécia de uma embarcação de migrantes é de uma dimensão inimaginável. Centenas de crianças mortas e muitas outras centenas de homens e mulheres que se ficaram no mar Mediterrâneo. É uma das maiores tragédias humanas naquele mar, no mar que banha boa parte de uma Europa que continua a não responder assertivamente perante uma crise humanitária de dimensões gigantescas.
Contudo, a indignação perante este evento parece ficar aquém de outros. Passámos milhares de horas a ouvir falar de Galamba e TAP, ouvimos conferências de treinadores e jogadores de futebol. Sabemos todas as stories que o amigo X e Y fez nas suas férias. Perdemos todo o tempo com o que pouco importa ao mundo.
Enquanto isso, morre gente afogada à porta da Europa.
A normalização desta (e de outras tragédias) parte de altas figuras europeias como van der Leyen, Scholz e outros, mas chega também ao cidadão comum. Aos meus amigos, a todos os amigos.
Falando com colegas e conhecidos sobre esta tragédia ouvem-se cada vez mais opiniões vindas de lugares muito escuros do nosso ser. Ouvem-se, perante a notícia da morte por afogamento de crianças, perguntas como "vais levá-las para tua casa?". Basta ver o que se diz por esse mundo sem fim das redes sociais. A desumanidade aumenta, o ódio está a ficar cada mais visível, as pessoas estão zangadas e quem paga são sempre outras pessoas, mais frágeis, com a vida envolta numa tragédia que nem conseguimos alcançar.
Ouvir pessoas que acabaram de vir de umas férias num lugar paradisíaco desdenhar por completo a vida de outros seres humanos, à porta deste nosso continente, deixa-me sem chão. Resta-me a sensação de desesperança pelo futuro de todos nós.
Vemos um planeta que está a tornar-se pequeno e doente para o que fazemos dele, vemos guerras sem fim e vemos mortes de inocentes por todo o lado. Vemos, também, como a Europa caminha para se fechar sobre si mesma, ignorando a sua própria história, deixando-se vencer por populismos absurdos e perigosos. Os valores desta Europa começam a tornar-se coisa que eu não entendo.
A forma como normalizamos a tragédia humana de pessoas diferentes de nós, de pessoas vindas de outras latitudes que não a nossa, deixa-me com a sensação que o futuro não vai ser bonito. Para ninguém.
Pode não caber à Europa toda a culpa pelo fenómeno no Mediterrâneo, apesar de inegável a negligência do Ocidente em muitas partes do globo, mas o que me faz escrever estas linhas é acima de tudo o desprezo, o silêncio e a apatia com que lidamos com a tragédia diária, enquanto usamos toda a energia e atenção em coisas do mais supérfluo.
Aproveito para partilhar a excelente e aprofundada reportagem do Fumaça, com 3 episódios, sobre este mesmo assunto.