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Vilipêndio

Vilipêndio

14 de Março, 2018

A moderna escravidão

vilipêndio

 

 

Soube há uns dias de uma história de uma conhecida que, acabada a faculdade, recebeu uma proposta de trabalho a full-time, numa empresa de renome, com o salário de zero euros. Eu facilito as contas: arredondado dá exactamente zero euros. 

 

De todas as perguntas que se possam fazer, a principal será tentar perceber como se chegou até aqui. Que caminho andámos a percorrer para um licenciado (que por mais recém que o seja, é) receber zero euros à chegada ao mercado de trabalho? Fale-se com as gentes antigas e tentem pôr esta ideia na cabeça deles: trabalhar, sabendo à partida que não se recebia nada. "Ah mas oh Ti Olim, a gente ali ganha experiência e é uma oportunidade muito boa". Infelizmente, por já não ouvir bem, o Ti Olim não ouviu experiência mas sim exploração, não ouviu oportunidade, ouviu calamidade. 

 

É dificil imaginar alguém conseguir comunicar a uma pessoa, dando a cara nesse processo, que está a ser convidada para trabalhar durante meio ano numa excelente e reputada empresa com um salário de zero euros sem interromper-se a si próprio a meio do caminho. Como é sequer possível conceber alguém perder um dia inteiro a trabalhar, cinco dias por semana, e chegar ao final do mês sem dinheiro para pagar a comida para levar para o... trabalho. A tal "experiência" não pode valer assim tanto.

 

Já todos ouvimos falar disto, não já? Aliás, sejamos sinceros, já é normal. É uma... oportunidade. Já tudo vale para se dizer que se tem um trabalho. A linha da decência esfumou-se tanto que já não existe e a cultura que disso adveio é simplesmente aterradora. Mesmo que seja um fenómeno restrito aos tais recém-licenciados, é algo que se assemelha muito a uma epidemia. 

Está totalmente disseminado na arquitectura de pensamento das empresas e dos empregadores esta pornográfica utilização de mão de obra qualificada de forma (mais que) precária e saber utilizá-la de forma reciclável. Precariedade é uma coisa. Isto é exploração humana. É uma verdadeira vergonha. É - apetece-me dizer - um crime! Por menosprezar e até ridicularizar o empenho de um aluno durante vários anos. Por dizer-lhe que o tempo dele vale de rigorosamente nada. É um crime pessoal, humano, social, laboral. É uma filha da putice. 

 

O crime não está na empresa e no empregador que querem ver trabalho a ser feito sem por isso pagar, o crime está no Estado que permite que isso seja remotamente concebível na cabeça de alguém. Porque se deixamos a noção do rídiculo a cargo de quem nos emprega é capaz de estar quase tudo perdido. Quando soube deste caso há uns dias fiquei perplexo. Sou um orgulhoso sobrevivente da Grande Crise do Trabalho de 2008-2016. Pensei, contudo, que agora vívessemos tempos de uma alucinante prosperidade, de sustentado crescimento, tempos de abundância de emprego e de dívidas baixas, tudo do bom e do melhor. Mas infelizmente parece que não existem taxas de bom-senso, ratings do absurdo, ou défices de vergonha nacional. Afinal parece que continuamos a ser Portugal e não este género de Portugalão, dos Centenos e das Bolas de Ouro com fartura.

 

Somos o que somos, o que sempre fomos, o que muito provavelmente sempre seremos. 

 

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