A cabeça da minha avó
A Laurinda, a minha avó, e a sua cabeça nasceram no Minho há 86 longínquos anos atrás. O país era outro, aquele Portugal já só se encontra em raras histórias contadas ou escritas.
Filha de uma família pobre de Ponte de Lima, a minha avó cedo começou a trabalhar. Era rapariga e poucas coisas haviam no futuro de uma rapariga para além do trabalho, o casamento e o servir. A vida era feita no campo, com animais, com as hortas e os lavores normais e brutos do antigamente. Não tinha nem dez anos, a escola era uma miragem, a preocupação era a comida em cima da mesa ao final do dia. O objectivo era a sobrevivência, desta e a de muitas famílias, num Portugal de gente calada, obediente e sob uma ditadura que iria durar mais 40 anos.
Aquele Portugal não era sítio bom. Não era sítio de gente feliz e o pobre era quem mais o sabia, é essa a sua sina. A minha avó passou dias em que a comida que colocava no estômago eram frutas apanhadas em árvores e nada mais. Raramente diz que passou fome na infância, mas faz questão de dizer muitas vezes que a comida era muito pouca e que hoje em dia desperdiçamos demasiado. Essa escassez de tudo haveria de lhe marcar o resto da vida, mesmo quando já tinha uma vida mais confortável.
Veio para Lisboa muito nova, para servir em casa de "senhores". Gente rica que punha crianças a trabalhar nas suas casas, em tarefas domésticas e tudo o que disso advém. Um Portugal de classes bem distintas, uma Lisboa de gente rica e que dependia do outro Portugal, o sempre esquecido mas vital Portugal pobre.
Foram anos em casa dos senhores, onde aprendeu a cozinhar aquilo que no futuro iria deliciar filhos, netos e bisnetos, anos esses onde a escola continuava a ser uma miragem. Ser uma mulher nestes anos era impedimento do mais básico, do mais elementar.
A Laurinda nunca aprendeu a escrever, nunca aprendeu a ler. Nunca foi exposta ao mínimo de educação formal. O impacto disso é incalculável e é algo que, há muito tempo, me entristece profundamente. Contudo, isso não fez com que a cabeça da Laurinda fosse menos profunda, menos inquisitiva que as de todos nós.
Teve sempre uma cabeça que pensava demais, demasiado rápido e com demasiado afinco. E nunca perdeu totalmente o sotaque minhoto, ficando como que uma raíz, uma ligação aos inícios.
Casou com o meu avô, um homem que tinha pouco de sensível e que raramente a tratava com carinho, um homem que descobriu os prazeres do alcool bem cedo. Frequentemente contava a minha avó como ele ia sair todas as noites com os amigos e ela era proibida disso. Ficava em casa, à espera do regresso do seu homem, a rezar por boas sortes e bons vinhos.
Teve dois filhos, o mais velho o meu pai, e para eles viveu o resto da vida. Foram o produto da sua vida. Foi tão boa mãe como boa avó, cumprindo, avançando.
Foi trabalhar para o Jardim Zoológico quando tinha cerca de 30 anos, uma das melhores coisas da sua difícil história. Era empregada de limpeza, mas há sítios onde ser empregada de limpeza pode ser repleto de beleza, de natureza, de animais. O Zoo é esse sítio e ela gostava de ali trabalhar. Era respeitada por toda a gente mas nunca fez propriamente amigos ou amigas. Era uma pessoa que toda a gente gostava mas que não tinha facilidade em criar laços profundos, era analfabeta e nao era propriamente dificil ver isso.
A vida é dura a dobrar, sempre.
Depois de décadas de trabalho, reformou-se, já depois do meu avô falecer. Viveu uma boa reforma, com saúde, é uma mulher de ferro a nível de saúde física. Teve netos, bisnetos e viu-os crescer.
A cabeça da minha avó é um mundo sem fundo, sempre mostrou ter opiniões sobre diversos assuntos, nunca foi influenciada realmente pela Igreja e sempre manteve opiniões bastante progressistas, principalmente tendo em conta a idade. Gostava de conversar com netos, a diferença geracional nem sempre se manifestava e era uma mulher que nos dava todo o espaço para sermos o que quisermos.
Há dois meses, a minha avó teve um AVC que a deixou bastante mal. Teve algumas semanas internada e regressou a casa, mas não era a mesma pessoa. Deixou de cozinhar como fazia e muito bem, está bastante confusa. Já não consegue tomar conta dela própria, como fez durante quase nove décadas. E está bastante zangada, com a vida. Tem todos os motivos para isso. Não é fácil acreditar em grandes melhorias, mas há uma fina esperança que isso seja possível.
A cabeça da minha avó é a história de um Portugal antigo e esquecido que desaparece a cada dia. É uma história triste, mas com muitos momentos de felicidade. Foi uma vida preenchida, de pensamentos que não precisam da escola para se formalizar, de opiniões dadas sem medo, uma vida de força, de resiliência, de tempestades ultrapassadas.