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Vilipêndio

Vilipêndio

31 de Dezembro, 2021

Dois mil e vinte um

NOISE

 

Uma das mais curiosas histórias que soube este ano aconteceu na estação britânica BBC, no longínquo ano de 1930.

Por esta altura do séc. XX, em que o televisor era ainda uma invenção mais próxima da bruxaria, criada por mentes alucinadas, a estação radiofónica da BBC era já agregadora de massas, juntava a quase generalidade das famílias todas as noites para o boletim informativo. Era um momento solene, recheado de simbolismo, era aquela voz a responsável por trazer as novidades do mundo que existia para além dos limites do pequeno mundo de cada um dos lares em Inglaterra. Eram dois boletins por dia, sendo que o restante tempo de emissão era ocupado por uma monótona mas tranquilizadora música de piano, que rapidamente também se tornou apanágio da estação.

No dia 30 de Abril desse ano, quando a noite chegou e a hora era de notícias, a rádio que todos ligaram trouxe-lhes o seguinte anúncio: “Boa noite. Hoje não há noticias.” E assim, em meros segundos, estava feito o boletim. A notícia daquele dia era que não havia notícias. E, por isso, logo pôde entrar a música de piano e as famílias prontamente retomaram a sua noite, descansadas porque, tirando pormenor aqui e ali, a noite chegava como a anterior, tudo permanecia igual no país e no mundo.

Um dia sem notícias. Quão pacífico, quão surreal, à luz destes nossos olhos de agora. Tentar imaginar um dia que culmine num anúncio destes parece mentira, faz pensar que nesse dia o planeta não girou e que o sol nem se deu ao trabalho de se levantar. Um dia sem notícias é tão impossível e inconcebível no nosso mundo actual que só pode ser anedótico.

Passados mais de 80 anos a televisão já é de toda a gente e mais alguma, e, sem darmos conta, criámos uma imensa fome de encher a cabeça de um e de todos com aquilo que não é notícia mas sim acontecimento. E por isso deixaram de haver dias sem notícias.

Com tantos sítios para olhar, já não sabemos para onde realmente olhar. Queremos saber tudo, aparentemente, mas não nos damos conta de que nos perdemos nesse processo. O que sabemos, por ser tanto, acaba por ser maior que nós.

Pareceu-me esta uma boa história para encerrar e guardar este ano que acaba agora. Um ano com tanta coisa que é coisa demais, acontecimentos demais, pessoas e comentários demais.

Mas como o andar do Sol e do planeta não se faz rogar com muita coisa, nem mesmo com pandemias, claro que acaba mais um ano, obviamente, tão rápido e fugaz quanto as nossas vidas.

E agora não podemos fazer outra coisa se não o sonhar, o projectar e depois, com alguma certeza, acabar no inevitável adiar.

No próximo dia 1 tudo começa como novo, ou começa outra vez, repetido e sabido, logo veremos.

Não há de trazer grandes mudanças, como sempre acontece, mas que traga ao menos um dia sem notícias. Isso sim seria memorável.

IMAGEM
Retirada deste artigo na Forbes
International Noise Awareness Day: Not just deafness, noise pollution can cause stress, mental illnesses, and even cancer

 

15 de Dezembro, 2021

Um Holocausto em cada esquina

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Há uns dias, a página de Twitter do Memorial de Auschwitz deixou esta resposta a um (de muitos) utilizadores que comparam o certificado de vacinação aquilo que Hitler e o seu regime fizeram aos judeus na Alemanha nazi. 

Se há um pensamento que tem sido constante ao longo deste último ano é este. 

Eu, que vi aproximadamente 3.487 horas de documentários sobre o tema, não consigo sequer começar a imaginar uma comparação. 

Mas tento fazê-lo, dada a frequência com que me deparo com esse argumento. 

 

Ora, a vacina. Uma vacina é um instrumento médico desenhado com o objectivo de diminuir a propagação de um vírus, neste caso o de um vírus respiratório que em algumas pessoas pode ser mortal. Foi feito também - e digo-o já para, no caso de haver aqui quem faça a sua própria pesquisa, não me colarem já um rótulo de "carneiro das massas" ou de simples totó - para ter lucro. Sim, as vacinas são para dar lucro e encher os cofres das farmacêuticas. Tal como 99% do que nós consumimos. O capitalismo funciona assim e nós temo-nos dado lindamente com isso. Contudo, é preciso uma coisa para obter o lucro, o tão desejado lucro: eficácia. É assim com tudo, dos cereais à gasolina, da roupa aos iogurtes. Se faz lucro é porque cumpre o seu objectivo. 

Feita esta introdução, como raio fomos parar ao Holocausto para discutirmos certificados de vacinação? Sou completamente a favor do debate público, sou completamente a favor da discussão e principalmente de medidas que nos envolvam a todos e no contexto de uma pandemia, sou a favor que não sejamos cegos no que toca à actividade de políticos e da sociedade no geral.

Mas... o Holocausto? Estaremos assim tão mimados e esquecidos para pôrmos o quase total genocídio de um grupo de pessoas, a morte de milhões de crianças e idosos em campos criados para o efeito em cima da mesa quando se discute medidas de controlo de uma pandemia? 

É fácil perceber a indignação perante a implementação de medidas restritivas a quem não é vacinado, é mais fácil ainda apontar todas as incongruências que se têm verificado ao longo de toda esta pandemia. Há medidas que foram, desde o início, um verdadeiro absurdo (durante um período tivemos crianças a ter aulas de máscara e malta jovem a curtir na discoteca sem nada disso ou, agora, que podemos comprar uma chamuça sem certificado mas não uma sopa porque é quente e conta como refeição) e que pouco fizeram no combate à pandemia excepto deixar-nos a todos mais cansados. 

Não queria estar na pele de nenhum governante nestes últimos anos, e creio que, da direita à esquerda, não haveria forma de encarar a pandemia de forma 100% eficaz e que agradasse a todos. Nunca se agrada a todos, como bem sabemos. Mas também não é fácil estar deste lado. No fundo, uma pandemia torna tudo mais difícil para toda a gente. 

Utilizar o Holocausto para mostrar a indignação perante estas medidas revela duas coisas apenas: uma ignorância enorme em relação à História e uma insensibilidade gigantesca, ao utilizar um dos capítulos mais negros da história da Humanidade como termo de comparação com uma vacina. 

Respeitemos os milhões de vítimas de um regime que se propôs a eliminar uma religião da face do planeta. Respeitemos a sua memória, por mais indignados que estejamos.

Não podemos deixar que tudo valha, não podemos continuar esta onda de guerra cultural constante, de entrincheiramentos e desvario, não tem que haver sempre dois lados e uma batalha. O debate público torna-se, a cada dia que passa, mais infantil, mais grotesco, mais primitivo e populista. Tudo vale para levar a água ao moínho, tudo conta para ganhar uma discussão, seja no Twitter ou num debate na televisão. É a nossa decadência, como dizia a página do memorial de Auschwitz, e não há como fugir dessa verdade. 

10 de Dezembro, 2021

A importância das plantas

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Os meus tomates cherry algures no Verão 

Sou menino da cidade desde sempre, nascido e criado em Lisboa, na imensa capital desta lusa pátria, cheia das suas coisas modernas e rápidas e tão vazia de tantas outras, vazia de tudo o que me habituei a ignorar e dar como inútil. 

Cresci sem saber quase o que era o contacto com a natureza e os animais. Nunca soube o que é a apanha da fruta, a vindima, a matança de um porco, a arte do azeite, nunca vi ninguém fazer pão sem ser numa padaria, nunca enchi chouriços sem ser de forma figurativa, não soube nunca o que era uma horta sem ser as pobres coitadas que resistem em varandas. No fundo, o que sempre soube é andar de carro, ir a centros comerciais, ir a restaurantes, navegar entre prédios, estradas grandes, estradas não tão grandes, ruas que vão desembocar noutras ruas. Sei, também, muito de semáforos. O que conheci de animais foi os do Zoo, onde passei as melhores memórias da infância, e as árvores dos (muitos) jardins que por cá vamos tendo. O meu contacto com a natureza foi esse.

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As minhas malaguetas, em banhos de luz na cozinha

Hoje, aos 30 anos, muita coisa mudou. As necessidades mudam com o tempo, na mesma medida que o próprio tempo muda. A velocidade e os objectivos vão-se alterando com o passar das experiências, e isso é o que torna a vida coisa interessante. 

Quando o destino se juntou a um cancro e me tirou a mãe aos 24 anos, o efeito mais imediato - e que hoje vejo como natural - foi a completa obsessão que ganhei com plantas. 

Tenho plantas em todos os cantos da casa, agora. Desde esse dia trágico que, ao acordar, o que faço primeiro, antes mesmo de vazar a bexiga cheia, é o ir ver se tenho rebentos novos. Se tenho vida nova cá por casa. 

Subitamente dei por mim, menino da cidade, a saber sobre tomates, pimentos e o que precisa a terra para ser fértil. Sem que o tivesse previsto, dava por mim a desejar ter mais vasos, mais terra, mais sementes, para ver cada vez mais vida a surgir.

Hoje, passados cinco anos, já me oriento na arte como nunca pensei vir a orientar-me. Sei coisas e mais coisas sobre essa arte de namorar a natureza. 

À morte da minha mãe, respondi com uma necessidade imensa de vida. E as plantas responderam de forma fácil a essa necessidade. 

Hoje, obviamente, continuo a ser um ridículo menino da cidade, mas sou um que quer e precisa, acima de tudo, de mudar de vida e ir de encontro a coisas tão básicas e aparentemente tão insignificantes que, por cá, neste mar de tecnologia e inovação e barulho e carros nos habituamos a menosprezar. 

Claramente não estou sozinho nesta descoberta, há todo um mar de gente perdida na imensidão de cidades, a ir buscar, todos os dias, a vontade de descobrir uma vida mais ligada a processos da natureza, mais ligada ao que nos é dado com trabalho e atenção e não com a compra em dinheiro. 

As plantas, com a sua lenta velocidade, ignorando a urgência que assalta constantemente quem vive na metrópole, ensinam muitas coisas. A vida, e tudo o que é fantástico nela, não tem que vir rápido, tem sim que vir à velocidade que tiver de ser. 

Sou, apesar disto, um orgulhoso lisboeta, gosto com todas as forças da minha cidade, Lisboa são vários mundos num só e uma cidade cheia de vida. Sei, também, que a cidade não é só coisas negativas. Contudo, temo que nos tenhamos esquecido de olhar para o campo, o retrógrado e velhinho campo, e tirar as lições que ele dá.

A velocidade a que queremos viver, aqui na cidade, tornou-se incompatível com a mais básica felicidade humana. Pelo menos para mim, que já sou gente. Não hão de pensar todos da mesma forma, porque assim também não tinha piada nenhuma. Mas, aqui para este menino da cidade, saber ir buscar os pontos positivos que a vida no campo oferece tornou-se, para além de uma necessidade, uma necessidade urgente.

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Batatas, pequenas mas minhas

 

04 de Dezembro, 2021

Deus, Pátria, Fascismo

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Punha-me a par das notícias quando vejo a imagem que acima reproduzo. 

Parecia ter entrado numa câmara do tempo e ter caído algures num passado enterrado. 

Todavia, para além de não ser passado era tão actual como ontem. 

Onde é que falhámos para, chegados a 2021, termos um partido que caminha para ser a terceira força política e que incorpora em si tudo o que foi derrotado naquele dia de Abril de 1974?

Como foi isto possível?

Como é que voltamos a ouvir o lema "Deus, Pátria e Família" sem ser num documentário histórico sobre a nossa longa - longa demais - ditadura?

Não tenho filhos mas sofro por quem terá de responder a estas perguntas vindas de um filho que, por acaso, acabou de estudar na escola que Salazar fechou o país ao mundo e silenciou todo um povo durante décadas, que era um ditador e prendeu milhares de pessoas pelo crime de terem uma opinião. Não sei como se poderá responder ao porquê de termos, quarenta anos depois desse dia inaugural, um partido que incorpora tudo o que é prévio à esse evento, tudo o que é retrógrado e antidemocrático. 

Que progresso é este que nos quer fazer voltar ao passado?

Como é que ligo a televisão em 2021 e vejo a saudação romana em pleno noticiário? Como é possível ver a ascensão de um partido de um homem só, inquestionável, líder absoluto de um grupo de homens e mulheres que o seguem cega e patologicamente? Como raio chegamos a 2021 com um líder de um partido a falar em Deus e em valores cristãos num evento político? 

Havia, quiçá, necessidade de criar um partido que agremiasse o conjunto de idiotas, extremistas religiosos e sociopatas do nosso país, tal como houve noutros países, mas não deixa de haver um perigo iminente nisso.

A nossa democracia é jovem e, por isso, frágil. Não será, certamente, um ex-comentador da CMTV que a irá destruir, mas as questões que deixa são complexas demais para serem ignoradas.

Em democracia, todas as opiniões são válidas e todas as ideologias devem ter voz. Enquanto formos nós a colocar a cruz no sítio que queremos de livre vontade, a democracia está a funcionar. 

Contudo, é preciso pensarmos seriamente neste partido, no que ele traz à vista e, mais ainda, no que ele traz escondido, é necessário que se olhe para os seus métodos de comunicação e propaganda. 

É urgente, acima de tudo, que se pense em todos os milhares de portugueses que querem o passado de volta, que querem um novo Salazar.

Não custa perceber a sede de poder de oportunistas como Ventura e das sanguessugas que dele se alimentam, mas custa muito entender a vontade que familiares, colegas, vizinhos, primos e amigos nossos têm em dar-lhe esse poder.

Importa discutir, aprofundar, melhorar, perceber e aprofundar mais de seguida. 

Este partido é uma doença e ainda vamos a tempo de nos curar dela. A cura, contudo, dá muito trabalho e, por isso, algo me diz que só iremos acordar quando o estrago estiver feito.