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Vilipêndio

Vilipêndio

27 de Setembro, 2021

O vencedor do costume

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Um em cada dois portugueses não foi votar nestas eleições autárquicas.

Medina até pode ter perdido a Câmara de Lisboa para um surpreendente Moedas, podem ter havido algumas autarquias que mudaram de cor partidária, mas comentários políticos a estas eleições certamente não faltarão. 

Não é isso que pretendo fazer, até porque muita gente há por aí que sabe bem mais disto que eu. 

O meu texto, este texto, é só para falar de uma abstenção que sempre me fez espécie e continua a fazer hoje e cada vez mais. 

Os números da abstenção são os maiores de sempre e isso não é coisa que surpreenda alma alguma mas tem que nos fazer pensar e questionar o que raio se passa na nossa sociedade.

Se metade das pessoas não se interessam pela política, seja ela de cariz nacional ou local, como podemos ver estas eleições como representativas? Como é que conseguimos olhar para elas como o resultado da vontade do povo se metade do povo não lhes passou cartão? Como é que podemos aceitar isto de forma tão silenciosa e resignada? Como é que políticos e comunicação social não exploram este assunto e tentam rectificá-lo?

Parece haver um interesse silencioso em que a abstenção permaneça alta e que continuemos a viver nesta semi-democracia. Não entendo a apatia em relação a este assunto, a forma leviana como se olha para o facto de metade das pessoas não querer absolutamente ter nada a ver com política, mesmo que a política lhe toque a pele e a sua vida pessoal e quotidiana.

Todas as eleições em que participo são um orgulho e uma lembrança de quão importante é a democracia e o significado de uma cruz num quadrado. A voz do povo tem de se ouvir e quando metade de povo não a quer dar, por um sem fim de razões, a democracia está doente.

Houve um afastamento gradual das pessoas para com o sistema político e os seus intervenientes. Dois mundos diferentes que não se tocam, mesmo que um não exista sem o outro. 

Isso é triste e um perigo para uma democracia.

Lutemos por isso, não pela esquerda ou pela direita, não por esta causa ou a outra, não pelas minorias ou pelas empresários, lutemos apenas para que todos tenham a vontade de pôr aquelas cruzinhas naqueles papéis. 

E depois fazemos as contas e pensamos no futuro. 

Um futuro feito com a voz de todos e não de metade. Só assim faz sentido. 

Fotografia Miguel Baltazar

15 de Setembro, 2021

O Qanon chegou cá

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Getty Images

Quando há dois anos, numa noite aborrecida em casa, me passeava por essa coisa chamada Twitter - algo que, depois de muita resistência, lá decidi começar a usar de forma muito moderada - deparei-me com um número impressionante de contas, principalmente americanas e brasileiras, cuja narrativa era apenas uma: a de que existe uma cabala enorme de elites de esquerda que se alimenta de criancinhas, tira-lhes o sangue e trafica-as por todo o mundo, cabala essa que é suportada pelos milionários Bill Gates e George Soros e a única esperança da humanidade reside em lideres como Trump, cujo objectivo é o de salvar o mundo e as criancinhas.

Demorei semanas a perceber o que acabei de escrever no parágrafo anterior. É bizarro demais, surreal a um ponto que ultrapassa a lógica. Ao início, achei piada. Chalupas do Twitter animam qualquer um e como não nos rirmos de gente que acha que Trump e Bolsonaro são enviados de Deus e que vêm salvar o mundo e limpá-lo desta gigantesca cabala?

Fui acompanhando nos meses seguintes a evolução desta alucinação maciça chamada Qanon. A piada começou a dissipar-se e começou a instalar-se em mim uma inquietude. Na mesma altura em que o FBI considerou o Qanon como uma ameaça à segurança nacional, as coisas começaram a mudar e mais gente se começou a aperceber dos efeitos nefastos que a queda nestes buracos escuros têm em muita gente. 

Teorias da conspiração são coisas tão antigas quanto o Homem, existem há séculos. Contudo, algo diferente se passava com este Qanon. Para além de, ao longo destes séculos todos, não haver plataformas digitais que permitiam o aglomerar de milhares de pessoas com visões semelhantes, a força que estavam a conseguir ganhar através dessas plataformas começou a tornar-se algo sério.

Há sempre um maluco em qualquer bar que diz que "isto é tudo uma cabala" e que "o 11 de setembro foi obra do Bush" e que "os políticos estão todos a enganar-nos". O problema hoje é que, com a Internet, podemos ter bares com 15 mil pessoas juntas no mesmo grupo. A alimentar-se mutuamente, horas seguidas por dia, todos os dias. A fazer crescer tudo isto, de forma exponencial.

Tinha razão em ficar preocupado com este fenómeno. Nos EUA, a alucinação atingiu niveis demenciais, com a invasão do Capitólio como apogeu. No Brasil, Bolsonaro continua a ser - para um número enorme de pessoas - o salvador de tudo, a imprensa o alvo a abater e a "Igreja" a matriz a defender.

E, agora, o Qanon chegou a Portugal. Importamos tanta coisa que também teríamos que importar chalupice. Ainda assim, diga-se, em defesa pátria, que esta chalupice já chegou a todo o mundo, da Alemanha à Austrália. Teria que nos calhar a nós, é esse o poder imenso da Internet.

Esta semana, depois de ver o que aconteceu a Ferro Rodrigues enquanto almoçava num restaurante com a mulher, o que senti foi um medo enorme. O medo do que esta gente pode fazer. E eles têm força. Tem pessoas, e isso faz a diferença toda. Todas elas parecem saídas de um ala psiquiátrica, parecem passar 20h por dia agarradas ao facebook e ao youtube, a fazerem a "sua pesquisa".

Não há como não achar que isto irá descambar para algo grave. Por trás do Qanon, há gente violenta, há sentimentos anti-sistema que são perigosíssimos, os ataques a jornalistas e cientistas são um dos princípios unificadores deste cada vez maior e mais complexo movimento. Basta ir à pagina de facebook do juíz Rui Castro para perceber que não é seguido por dez maluquinhos. São mais e serão cada vez mais. Nessa mesma página, através dos comentários, percebe-se rapidamente a obsessão por assuntos como a pedofilia, lê-se ataques violentos à comunicação social e a todos os intervenientes políticos, a vontade cega por um mudança total do sistema. Uma raiva constante, um odio imenso, a tudo, desde as vacinas aos corruptos, das elites de esquerda à imprensa. Tudo isto cheira a algo mais que uma mera conspiração e começa assustadoramente a parecer-se a um ataque real à democracia. Nomeadamente, quando a alucinação deixa de ser apenas online e passa para a vida real, como sentiu Ferro Rodrigues esta semana. 

Tudo isto é tremendamente perigoso. Estas pessoas são contra todos os pilares das nossas sociedades, querem destruir a nossa forma de vida, querem ser os políticos, os cientistas, os tribunais, porque se acham mais informados que todos eles. Querem retirar todos os intervenientes eleitos, atacar as bases fundadoras da nossa democracia e querem instaurar uma pseudo-ditadura onde o seu líder seja incontestado, um homem viril, branco e que vai acabar com toda a podridão no país, no mundo, no Sistema Solar. Seja um Trump ou um Rui Castro, seja o que for, é para pô-lo lá. Pelas criancinhas.

Estas pessoas sentem-se enganadas e, quando assim é, acabam muitas vezes a recorrer à violência. Já não são só negacionistas, são muito mais que isso. São fascistas mascarados de lutadores pela liberdade, são anarcas com a falsa apologia da ordem e do respeito, são analfabetos com a mania que são cientistas, são investigadores de WC que acham que descobrem a verdade toda do mundo que nos escapou a todos nós, os restantes sete biliões de almas neste planeta.

São pessoas doentes. Pessoas frustradas na sua vida, enganadas quiçá por todos, que a vida não tratou bem. O aparecimento de plataformas como o facebook deram um sentido à vida destas pessoas, o sentido de descobrir uma verdade que não existe. Deu-lhes o conforto de pertencer a um grupo de pessoas iluminadas.

Entretanto, com a pandemia e o crescimento de movimentos resistentes a todas as medidas de mitigação do vírus, todo este movimento foi invadido por extremas-direitas, neonazis, por gente violenta e extremista. Quem acompanha tudo isto há algum tempo sabe bem a estreita ligação que existe entre grupos de extrema-direita e esta pseudo preocupação com as criancinhas. É tudo uma fachada para algo mais sério, mais grave e totalmente antidemocrático.

Estejamos atentos. O que parecem ser chalupas hoje, amanhã são os que queimam livros e matam jornalistas.

Isto vai dar merda e eu avisei.

10 de Setembro, 2021

Já não se fazem destes

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Morreu Jorge Sampaio, aos 81 anos. O antigo presidente da República, autarca da Câmara de Lisboa e figura central da revolução que nos injectou a liberdade nas veias, deixa-nos a nós, portugueses, e a este país à beira-mar plantado com um vazio enorme.

Figura destacada da esquerda nacional, Jorge Sampaio fez sempre muito mais do que ser isso. Como qualquer agente da causa que é política, não poderá ser herói de todos, não poderá ser representante e porta-voz de todos os que respiram e vivem o país. Contudo, o que quero, nestas linhas, realçar são as qualidades que fizeram de Sampaio uma coisa simples e tão corriqueira mas que parece rarear nos dias que correm: um homem calmo, democrático e decente. 

A política que ele ajudou a criar neste país, depois de sessenta anos de adormecimento e ditadura, é uma política que cada vez mais parece coisa do passado. Tanto pela esquerda como pela direita actuais, não parecem haver as vozes, a postura, o estadismo, o savoir-faire, a intelectualidade, a cultura enciclopédica, a calma, a humanidade, a voz terna, a moderação e tudo o que fez de Sampaio, para além de um excelente político, um homem bom. 

Nunca o conheci mas não escrevo aqui sobre quem ele era na esfera privada. Quem ele foi, quando a câmara e o microfone lhes surgiam à frente é o que nos deve fazer avaliar a figura política. E a imagem que Sampaio transmitiu é uma imagem que desaparece do panorama político actual, tornou-se algo aborrecido quase. Já ninguém parece querer um Sampaio, que procurava entendimentos e consensos, que aceita todas as opiniões, mesmo aquelas com que discordava veementemente.

Num mundo cacofónico, onde quem grita mais alto é quem irá ser ouvido, parece que estamos a perder de vistas as linhas mestras, os ideais fundadores e o bom senso. 

Está a desaparecer toda a geração de homens e mulheres que lutaram, porque nasceram no meio dele, contra um regime aterrorizador, silenciador, que lhes amputou os braços e o crescer da alma, e que fez da sua vida uma constante luta pela vitória final, a vitória da liberdade e da democracia. 

Nós, o que nascemos num país onde já se podia dizer e fazer tudo de peito feito, vamos esquecer-nos de tudo isso.

Receio que, no futuro, quando tivermos de travar as mesmas lutas, ao olharmos para quem temos ao lado, não vejamos um Jorge Sampaio.

Que descanse em paz. E em liberdade, como ele nos ajudou a viver. 

07 de Setembro, 2021

Olhemos para o Brasil

vilipêndio

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Já poucas dúvidas existem que Bolsonaro é a versão brasileira de um Trump que virou os Estados Unidos do avesso. Dúvidas não restavam que Bolsonaro iria ter o mesmo papel político que o seu congénere americano, mas poucos anteciparam que iria seguir os seus passos, literal e pormenorizadamente, cada ataque ao sistema seguido de outro e de forma tão óbvia. 

Depois de perceber que estava a caminhar para perder umas eleições - o absurdo da sua resposta à pandemia fez com que perdesse eleitorado até à direita - decidiu activar o último plano, o plano do desespero. Passou a semear o caos acerca de umas eleições que não aconteceram ainda, implantando a semente da desconfiança e de um possível "golpe" pelas máquinas de voto electrónicas (sim, o Trumpismo básico) chegando inclusive a dizer que só existem eleições se ele quiser. Toda esta narrativa, mastigada e remastigada, parece saída de um diário de bordo de um esquizofrénico, já cheira mal de tão incoerente que é. Está é a face visível do fascismo modernizado, de máscara mas que acaba a deixar o rabo de fora. O que estes políticos souberam fazer, aliados a máquinas de propaganda digital bastante sofisticadas, será contado em livros de história num futuro não muito distante. 

Conquistaram uma boa parte do eleitorado na base da criação de uma realidade alternativa, na distorção do mundo como forma de se implantar nos cérebros de milhões como únicos possíveis salvadores e únicos acima da corrupção, os portas-estandartes das pessoas "de bem". 

Precisamos de estar muito atentos a estes autoritarismos mascarados de patriotismo, à corrosão de todos os pilares da democracia, seja o jornalismo, a justiça ou a ciência, e Bolsonaro é só mais uma prova que há uma doença, para além da covid, a assolar o mundo. A doença destes autoritarismos de direita, pseudo-evangelistas, pseudo-patriotas, que no fundo só escondem fascismos antigos e expõem o que de pior existe nas nossas sociedades, que trazem à tona da água os sentimentos mais primitivos e básicos.

Já há uns tempos disse que tenho dúvidas que este fenómeno não conquiste Portugal. Continuo preocupado com isso e penso que todos devíamos estar.

Não se trata de direita ou esquerda, mas de defender valores que estes exércitos de alucinados do Twitter com Deus, Pátria e Família tatuado nos braços, partilhadores compulsivos de whatsapp, críticos cegos de todo o jornalismo e toda a ciência parecem querer atacar, seja em americano, em português do Brasil ou em húngaro. Trata-se de defender o respeito e a decência acima de qualquer ideologia política.

Hoje metade do Brasil sai à rua a favor de Bolsonaro. Seja porque vêem nele o salvador (do quê?) que Deus lhes enviou, ou o que vai livrar o país e o mundo do comunismo que se espalha por todo o lado e conquista o mundo, o salvador das elites que controlam tudo e querem fazer dos nossos meninos meninas e das nossas meninas meninos.

É tudo uma alucinação ridícula, mas demasiado verdadeira. Trump provou-o. Bolsonaro não é Trump, assim como o Brasil não é igual aos Estados Unidos, mas o desafio será o mesmo: defender a democracia e a verdade.

Esperemos que o resultado seja o mesmo do dia 6 de Janeiro no Capitólio e que a conspiração e o autoritarismo saiam derrotados. 

01 de Setembro, 2021

As grandes realizações da pandemia

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Ilustração de Ritika Bohra (@www.downtoearth.org.in)

Quando no início de 2020 se começou a falar de um vírus que fora descoberto em Wuhan, na China, poucos – se é que alguém - antecipariam o que aí vinha. Estamos em Agosto de 2021 e a Covid-19 continua a ser um dos assuntos mais prementes no nosso dia-a-dia, seja entre conversas ocasionais ou nos muitos meios de comunicação, digitais e não digitais, nas notícias e feeds dessas televisões e smartphones. 

Fenómenos globais como este são eventos raros, a última pandemia da escala desta tinha sido há mais de 100 anos, quando o vírus da Influenza H1N1 provocou largas dezenas de milhões de mortes por todo o planeta naquela que ficou conhecida como a Gripe Espanhola.  

De lá para cá, tanta coisa mudou no nosso mundo e nas nossas vidas que elencar as diferenças seria absurdo. Cem anos mudaram quase tudo nas nossas vidas e sociedades. 

Poucos ou nenhuns dos sete biliões de seres humanos vivos atualmente passaram pela pandemia do início do século XX, é um passado tão longínquo que ficou lá para trás. 

Mas, hoje, passados 18 meses de pandemia, podemos afirmar com algum grau de certeza que não mudou tudo. De todas as alterações à nossa vida, dos confinamentos aos distanciamentos, do encerramento de bares, discotecas, restaurantes, a todas as medidas, números, mortes e infectados houve coisas que se mantiveram inalteradas entre um século e o outro. Todas essas coisas têm a ver com algo que, nestes cem anos, foi quiçá aquilo que menos mudou: nós, humanos. 

Podemos andar em carros e aviões, podemos ter um smartphone que nos coloca o mundo todo na palma da mão, podemos mandar vir livros da internet enquanto mandamos vir comida para casa, mas continuamos, em boa medida, a ser iguais ao que éramos nesses idos anos de 1900 e pouco. 

Sou profissional de saúde num hospital central em Lisboa e, nos últimos meses, um acontecimento marcou-me mais do que todos os outros. Ao regressar de um turno, em Janeiro e em pleno pico de doentes internados covid e de mortes diárias, dirigi-me ao café perto da minha casa para ir buscar o pão e o salgado do dia. O dono, um homem simpático mas que parece cada vez mais zangado e frustrado, recebe-me com um bom dia algo seco. Imediatamente decide mostrar-me - porque é na partilha que está a validação do facto - um vídeo que circulava pelo facebook e que um primo partilhara com ele. Nele, um youtuber tornado especialista em tudo, afirmava, entre outras coisas, que os doentes que estavam nos hospitais eram, na verdade, bonecos para enganar as massas e que os profissionais de saúde ganhavam uma batelada de dinheiro com cada turno que faziam. Sem saber a minha profissão - por algum motivo nunca confiei nele a cem por cento -, mostrava-me o vídeo com um ódio nos olhos que os faziam quase saltar da cara, e sem saber também, aquele momento tornou-se para mim uma coisa que o dono do café nunca poderá perceber. Não consegui nem acabar de ver o vídeo, passando a fase de incredulidade apenas ficou um enorme insulto, e esse insulto era insuportável. A falta de respeito que senti ser-me esbofeteada na cara e a raiva que senti por todos os doentes que tinha visto naquele turno da noite a morrer - e que nao eram bonecos mas pais e mães de alguém - e pelo caos que vi instalado num hospital que nunca passara por tão grande teste são totalmente indescritíveis. Pareceu-me, naquele instante, que ele vivia num planeta que não o meu, a sua realidade e a minha não eram a mesma coisa. Já não era uma questão de gostos e preferências, opiniões e contra-opiniões. Não, naquele momento era a verdade que não era a mesma. 

Somos habituados a ouvir, desde crianças, que há pessoas boas e pessoas más. Habituamo-nos, desde cedo, a aceitar o facto de que nem todas as pessoas têm os nossos valores, que há quem espezinhe outros a seu bel-prazer, que há quem critique e odeie gratuitamente, que há pessoas verdadeiramente egoístas, mal intencionadas e com as quais devemos, acima de tudo, manter a distância. Na maior parte do tempo, tudo isto é incrivelmente fácil de lidar e as sociedades vivem bem tendo, dentro delas, tão distintas formas de viver e ver a vida. Contudo, uma pandemia muda muita coisa. Uma pandemia é um teste a tantos e tão variados níveis das nossas vidas. Um vírus, algo invisível, obriga-nos a remar para o mesmo lado em muitos assuntos. Como ficou provado, isso é impossível.  

As grandes realizações desta pandemia residem em dois factos: a de que é impossível nos unirmos com o mesmo objectivo - as alterações climáticas são outro exemplo disso - e que a desconfiança perante as autoridades e os meios de comunicação atingiu o seu auge. O egocentrismo que as nossas sociedades tão bem têm nutrido, seja pelo narcisismo crescente nas redes sociais ou pelo auto-centrismo imposto pela competitividade de uma sociedade capitalista, levaram a que, num momento como este, parte das pessoas, em Portugal e em todo o mundo, dessem um passo atrás e questionassem o porquê das restrições à nossa vida, o porquê de termos de pensar nos hospitais e nos idosos, o porquê de quase tudo. Quando foi pedido, não por youtubers mas pelas autoridades de saúde de todo o mundo, que tomássemos uma vacina porque é o único método que dispômos de mitigação do vírus e de salvar – com isso – milhares de vidas, muita gente não conseguiu tomar essa decisão. Felizmente em Portugal esse número não foi tão grande como noutros países. Contudo, os sentimentos de hipocondria, auto-preservação, obsessão, conspirações estão lá. O que aconteceu em Odivelas com Gouveia e Melo é revelador de como parte das pessoas que vivem nas nossas ruas e nas nossas cidades, estão a viver num mundo diferente do nosso, não conseguem aceitar factos que para muitos de nós são óbvios e fáceis de aceitar. Vivem numa realidade onde o seu eu é imensamente mais importante que o bem-estar do outro. Isto é, de todos nós. 

A desconfiança de todos os meios de comunicação principais, as autoridades políticas e as de saúde pública foram a gasolina por cima de todo esse fogo. O perigo desse fogo é mais do que visível, leva a momentos de enorme tensão e violência. Quando as pessoas se sentem enganadas, tornam-se outra coisa. As redes sociais, ao criarem câmaras de eco e grupos organizados de pessoas, alimentaram esta negação dos factos veiculados pelos media e pelas autoridades. 

É indissociável de todo este fenómeno a raiva e a dor causadas por perdas económicas muito grandes de alguns comerciantes e profissionais de outras áreas. Contudo, isso não justifica tudo (são muitos os que não perderam salário e ainda assim são contra as medidas e a vacinação e tudo o resto) e em algumas dessas pessoas fica a ideia que, em qualquer circunstância que estivessem, iriam sempre descambar para um mundo alternativo de factos e uma realidade tóxica e egoísta. 

Nada me tira da cabeça a imensa ironia que todos os dias assistimos no hospital. A ironia de pessoas que, conscientes, decidem abdicar da vacina e, depois de contraírem o vírus, inconscientes ou em coma, passam a estar totalmente nas nossas mãos, nas mãos da ciência da qual antes desconfiavam e cuja ajuda não aceitaram em primeiro lugar. A ironia disto é enorme mas a tristeza subjacente é ainda maior.

Teremos todos que viver em conjunto, como já percebemos, e isso revela-se uma tarefa bastante árdua em momentos em que devíamos olhar uns para os outros e ajudarmo-nos de todas as formas que pudermos.