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Bo Burnham, um comediante americano que se iniciou em 2006 ao leme da nova geração de youtubers e que ao longo destes anos se tem tornado num dos mais enigmáticos e carismáticos intérpretes nessa complexa arte de fazer rir, lançou este ano o seu especial da Netflix intitulado de Inside, pelo contexto em que foi realizado: sozinho no quarto, em plena pandemia, junto com os seus pensamentos ruminantes e todas as questões e questiúnculas que inundam um cérebro que pensa demasiado. Tudo misturado entre músicas reais demais e piadas tão certeiras que deixam, por vezes, de ser piadas.
Posso dizer que fiquei fascinado com este Inside apesar de, previamente, pouco saber deste comediante excepto um ou outro vídeo mais engraçado no Youtube.
Burnham parece-me um comediante típico, inundado de questões, observações, críticas e opiniões, mas que deu um passo ligeiramente à frente e abriu a porta para a sinceridade suprema.
If you wake up in a house that's full of smoke
Don't panic, call me and I'll tell you a joke
Bo parece apostado em, acima de tudo, ridicularizar o papel desses mesmos comediantes, pondo-se a ele mesmo no centro do absurdo, gozando com a inutilidade que por vezes parece fazer da comédia uma coisa pequena, supérflua e fútil. "All eyes on me" é uma das músicas que ele interpreta, gozando precisamente com o egocentrismo em que qualquer comediante acaba por redundar.
Todas estas questões ganham outra importância quando milhões de pessoas morreram nos últimos anos devido a uma pandemia e em que nos vimos forçados a questionar tudo. A depressão é fácil de se instalar. Diz ele:
The world is changing
The planet's heating up
What the fuck is going on?
Rearranging
It's like everything happened all at once
Um, what the fuck is going on?
The people rising in the streets
The war, the drought
The more I look, the more I see nothing to joke about
Is comedy over?
Should I leave you alone?
'Cause, really, who's gonna go for joking at a time like this?
Should I be joking at a time like this?
Há certamente laivos de egocentrismo neste tipo de comédia e essa será porventura a maior crítica que receberá Bo por este seu especial. Contudo, onde alguns verão egocentrismo ou falsa modéstia, eu vejo uma inteligência acima da média que o faz questionar coisas como a manipulação das mentes de milhões de pessoas por empresas tecnológicas que cada vez mais nos parecem controlar como marionetas, a fortuna surreal de Jeff Bezos ou a comunicação digital, passando pela sátira a coisas como as análises das análises que hoje são feitas por todo o lado (num sketch soberbo em que se põe a criticar a sua crítica da sua crítica a um vídeo).
Acima de tudo, aquilo que mais me marca neste Inside é a junção entre uma comédia observacional e auto-reflexiva em tempos tão peculiares como este que vivemos, com os tiques depressivos e hiperrealistas que, a meu ver, definem boa parte da geração de Bo. Os millennials, geração em que também me insiro, é um grupo etário muito específico que cresceu sob um manto de altíssimas expectativas e com muito menos dificuldades que as gerações anteriores e que se vê, passadas duas crises e uma pandemia, num marasmo económico e social que nenhum mestrado ou doutoramento pode solucionar. A verdade é que muitos de nós têm uma vida mais fácil que a dos nossos pais, que temos a Internet que tudo mudou e facilitou, é certo que temos o mundo a nossos pés, mas também é certo que em muitos casos ganhamos o mesmo ou menos que os nossos pais e que temos acesso e tempo para nos questionarmos sobre muitas coisas para os quais os nossos pais e avós, por vidas mais difíceis, não tinham disponibilidade. Num mundo que mais barato e pacífico não parece estar, em que a democracia como sistema político passa por vários ataques globais e em que os ideais progressistas com os quais muitos de nós nos habituámos a ver como intocáveis ao longo da infância e juventude, afinal não o são assim tanto.
A geração millennial é tudo isto, um conjunto estranho de gente que já não é criança, que teve tudo o que quis, que tem habilitações mas que, por saber de tudo na Wikipédia, não pode estar absolutamente feliz.
Dando as boas-vindas à Internet e mostrando o poder de absorção que ela tem, canta ele, naquela que me ficou como a frase mais marcante :
Could I interest you in everything all of the time?
A little bit of everything all of the time
Apathy's a tragedy, and boredom is a crime
Parece-me que Bo Burnham, neste Inside, conseguiu pôr isso tudo em hora e meia, conseguiu descrever o ridículo da comédia, da música, do mundo, de toda uma geração e do próprio entretenimento em tempos em que basta passar um dedo num ecrã e ver, por exemplo, que há países (pobres, claro) literalmente a desaparecer pelo aumento do nível dos mares.
You say the ocean's rising like I give a shit
You say the whole world's ending, honey, it already did
You're not gonna slow it, Heaven knows you tried
Got it? Good, now get inside.
No final de contas, o mundo é tudo menos coisa com que se brinque, embora rirmo-nos seja, em última instância, a melhor e mais pura coisa que podemos experienciar.
Rir será sempre a única solução, a única hipótese que temos de acertar contas com o mundo.