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Vilipêndio

Vilipêndio

29 de Junho, 2021

Neutro, no meu canto

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Ferenc Isza/AFP/Getty Images

Portugal não sabe quando deve estar calado e quando deve falar.

Ora abre a boca demais com os russos ou se cala perante os húngaros.

Portugal não sabe o que anda cá a fazer, no fundo.

Ajudemos Portugal. Ele, para além de patologicamente neutro, parece ter um problema em arrepiar o pêlo ao senhor Putin. 

 

As leis anti-LGBT na Hungria são tão pouco surpreendentes como assustadoras, são a modernização da Idade da Trevas, deve dar medo e fazer acordar uma Europa que pouco vai mantendo a que se agarrar. 

Mas há lutas que ainda valem a pena. Há direitos que já deixaram há muito de ser questionáveis, e isso é uma luta que nos deve acordar e mobilizar. 

Senti vergonha com o silêncio de Portugal, mas a política há muito deixou de ser compreensível. Felizmente, o silêncio de um país não é necessariamente o silêncio das suas gentes. 

Não deve haver Putin nenhum que cale os valores de uma humanidade que cresceu e evoluiu, não deve haver Putin nenhum que destrua séculos de pensamento e aprofundamento da nossa relação com o mundo.

Há uma franja das pessoas que continua a crer que os seus ideais devem influenciar o corpo e a vivência de todos à sua volta, como se nascessem com o condão da superioridade moral.

Não há neutralidades que cheguem no que toca a estas questões e este foi só mais um exemplo do ridículo a que se consegue submeter o nosso país quando assim entende. 

28 de Junho, 2021

O futebol como a vida

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Valentes fomos certamente. Imortais nem tanto. Embora o tiro tenha sido apenas um, frio, seco e eficaz. 

No final, não ganhou o melhor. No final, o que acontece sempre voltou a acontecer:  os mereceres não valem de nada, a realidade quase nunca é o que se esperava e a bola nunca entra quando devia.

Esperei muito daquele remate final do Félix. Pensei que pudesse estar ali o pontape definitivo na carreira de um miúdo que nao queremos que chegue aos 30 anos como uma promessa. Quero muito que se afirme como a potência futebolística que é, muito embora o cumprir de uma expectativa seja bem mais complexo que o simples correr com uma bola nos pés.

A sorte não teve connosco mas nem Ronaldo resolveu, nem Bernardo surpreendeu, nem Jota encontrou a agulha no meio do palheiro, nem Moutinho magicou, nem Bruno Fernandes mexeu. Pouco deixa marca neste jogo para além de um Pepe surrealmente em forma e imperial e um Renato que corre por quatro ou cinco, apesar da selecção ter sido mais equipa que os belgas, ter tido mais oportunidades e mais vontade. 

Mas no final, a bola bateu no poste e o zero ficou ao lado do um. E assim ganham os outros. 

O futebol não deixa de ser o mesmo caos da vida, a mesma aleatoriedade, o mesmo bater no ferro.

Houve jogadores que pareceram chegar a este campeonato abaixo de forma, carregados por épocas exigentes em equipas muito exigentes de campeonatos tremendamente exigentes. Bruno Fernandes é um dos maiores exemplos. Mais irritação que brilhantismo, mais vontade que qualidade, pouco mostrou quando quiçá mais queria mostrar. 

André Silva chega como segundo melhor marcador da liga de Lewandowski e não mete a rede a mexer neste Euro, Patrício defendeu tudo como sempre e não teve a estrelinha que lhe permitiu que o seu único erro, no golo de Hazard, não fosse o erro decisivo. 

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Palhinha é, porventura, a revelação do Europeu para a equipa das quinas, impôs-se num palco gigante, porque foi gigante, e isso não é fácil, de todo. Vai ser interessante ver a sua evolução, é um jogador fortíssimo do ponto de vista físico mas que a isso junta um belos pés, tal como Renato. 

Esse mesmo, o Renato que me fez saltar do sofá varias vezes neste Euro, ganhou lugar vitalício. Vai ser difícil tirar o médio do Lille desta equipa enquanto mostrar a garra que leva consigo e a força que impõe no meio-campo. 

De resto, há jogadores que são capazes de não voltar a jogar numa montra destas, há outros que teremos de ver como o tempo molda, e Fernando Santos parece ter o lugar assegurado para o Mundial, pelo menos. 

Quanto a Ronaldo, devem ser poucos os que crêem que foi a sua última competição. A sede é sentimento complicado, nunca deixa de existir, apenas vai sendo por vezes saciada. 

Os campeões da Europa vão deixar de o ser. Esta geração futebolística já teve o seu apogeu. Veremos quantos anos teremos de esperar para podermos festejar novamente uma conquista como a de 2016.

Venham os Jogos Olímpicos. Venham todos os outros heróis, silenciosos mas igualmente valentes. 

26 de Junho, 2021

Partido Socialíssimo

 

A liberdade que tenho em escrever estas linhas é uma liberdade que tem várias caras, interpretações, formas de ser e não ser. A liberdade é coisa maleável, pode ser a minha vontade e o ultraje de outrém. Ganhámo-la, a liberdade, no vinte e cinco de Abril, dizemos nós mas, tal como tudo o que nos é conhecido, vai mudando com os tempos. Hoje em dia a liberdade é uma coisa na vida real e outra coisa totalmente diferente nesse outro mundo, o digital. 

É de uma soberba ironia que, pouco tempo depois de sabermos que o Partido Socialista nomeou - e apaparicou com um chorudo salário - Pedro Adão e Silva como presidente das comemorações para os 50 anos da revolução de Abril, tenhamos sabido que a câmara de Lisboa, reduto mais ou menos indiscutível do mesmo partido, partilha há anos com países mais ou menos democráticos dados de cidadãos portugueses envolvidos em manifestações que podem ir do pro-Palestina ao pro-qualquer pessoa que seja contra o regime do todo-poderoso Putin. 

A forma absurda como Medina afirma ter sabido da partilha de dados através da comunicação social quando o seu próprio gabinete já tinha lidado, há uns meses, com críticas de activistas pró-palestinianos demonstra o jogo de sempre dos mesmos de sempre. O mais do que candidato a suceder a Costa na liderança do PS escapa-se de forma subtil e engenhosa, caminhando para uma mais do que certa reeleição para o cargo na autarquia de Lisboa.

O caso é bastante grave. Não fiz parte de nenhuma manifestação supracitada, contudo arrepia-me a medula que me passa na espinha pensar que deslocar-me a um determinado sítio para fazer barulho me pode valer um bilhete para a embaixada russa ou israelita. Identificar pessoas que gritam a favor de Navalny e não identificar os que gritam pelo Manchester City parece-me desequilibrado. No fundo, identifiquem toda a gente, partilhem tudo, digam tudo a toda a gente. Temos que nos fazer valer de algo. 

A parte de espantar no meio deste drama todo é que o PS se mantenha, ainda assim, como única real potência política para as legislativas de 2023 e que se mantenha com maior percentagem nas sondagens do que toda a direita. Na existência de ideias da esquerda à direita, ganha o partido que, apesar de ter um Cabrita, tem conseguido não afundar o país num caos pandémico e que, mesmo tendo um Medina em conluio com autoridades russas, joga a carta da estabilidade.

A direita está a conhecer-se, ou reconhecer-se, a descobrir novos caminhos, enquanto o PS navega por mares revoltos, por onde navega também um Bloco de Esquerda que não sabe bem ainda se quer ser da luta e do activismo ou do sistema de governação, mas esses mares não chegam a quebrar o casco socialista. 

Costa pode contradizer e bater-se publicamente com o político mais cimeiro e popular no que toca à gestão da pandemia, pode ver o seu partido envolto numa já corriqueira amálgama de casos e casinhos, Costa pode ver tudo isto acontecer ao mesmo tempo que acerta a agenda para a saída para o cargo europeu. Mantendo-se há mais de nove mil dias em cargos executivos, como escrevia o Público há uns dias. 

Costa e o PS jogam as suas liberdades, políticas e eleitorais. Nós jogamos com as nossas. Mas é bom que, nesse jogo, nos mantenhamos sempre em casa, não vá o nosso nome ir parar à secretária do embaixador russo.

22 de Junho, 2021

O apelo do autoritarismo

 

Um homem não se mede em tamanho mas sim em atitudes. Um homem, daqueles a sério, não tem medo de nada, enfrenta tudo de frente e nunca chora. Um homem a sério tem uma mulher (também a sério) ao lado dele, a qual ele estoicamente protege e abriga. No fundo, um homem a sério é um homem que não se deixa influenciar por nada excepto os seus ideais, valores, desejos e ambições.

Em muitas sociedades, o papel do homem tem vindo a ser alvo de alterações geracionais e formas de estar que se vão adaptando ao andar do tempo. Mas não em todas as sociedades, não da mesma forma, com a mesma intensidade e velocidade.

Por cá, tal como nas sociedades mais a leste desta Europa, a imagem do homem providencial e estóico é coisa que actualmente ainda tem bastante significado e importância social.

Serve esta introdução para trazer à mesa esta notícia recente do Expresso em que revela um estudo feito a nível europeu que comparou a receptividade de cada país a líderes políticos autoritários que pudessem ignorar o Parlamento e/ou eleições. As conclusões colocam Portugal nos lugares cimeiros (ao contrário do futebol, isso não é coisa boa) com uma percentagem de 63% de inquiridos que se mostram disponíveis para aceitar um líder com qualidades de autoritário. 

A herança que Salazar nos deixou, para além das décadas de ditadura sem fim, é uma herança que tem sido e continuará a ser difícil resolvermos como sociedade.

Não foi um ditador qualquer, como nada é uma coisa qualquer por estas terras. Há sempre um pormenor que muda tudo, uma vírgula que muda um livro e uma história.

Salazar, para além de ditador e de ser responsável por crimes contra a humanidade, foi também um homem serio, impenetrável, incorruptível.

E essa imagem está tão impregnada no texto do nosso país que, com o passar do tempo, menos Salazar é um ditador e mais um homem sério se torna. A distância do tempo e dos olhares tem esta capacidade: a de mudar tudo sem que nada mude.

O homem que nunca casou mas que albergava e protegia várias mulheres, da governanta toda-poderosa Maria à filha desta, Salazar foi o homem perfeito, com a propaganda perfeita, na altura perfeita e no país perfeito. Homem de intelecto superior, orador de excelência, tão sério que provavelmente nunca terá gasto um cêntimo de dinheiro público sem que fosse anunciado, explicado e reposto. Havia, obviamente, tanta corrupção naquele regime como noutro regime qualquer. Certamente um dia havemos de perceber que o problema não é a forma nem a cor do regime mas o objectivo de qualquer um deles, o poder, que leva a que a corrupção e os interesses estejam presentes sempre. 

Contudo, a imagem que fica de Salazar numa parte significativa da população portuguesa é a do homem que não brincava em serviço e que punha os interesses pátrios acima de qualquer interesse.

É, por isso, fácil de perceber onde tanta gente vai buscar a tentação por um homem autoritário, um líder que ignore a democracia representativa, ponha fim ao gastadíssimo jogo entre partidos (os malditos e cada vez mais detestados partidos políticos), que ponha o país na linha e acabe com as sanguessugas que por aí proliferam.

Tenho a dizer que poucas coisas me preocupam tanto como isto. Com o suceder de vários erros e azares, corremos o risco de ver este país cair novamente nas mãos de um homem só, engolfado num culto de personalidade e que ignore e ataque a democracia e os seus valores, isolando (mais ainda) o país, matando a pluralidade de ideais e visões. 

É fácil entender de onde vem toda esta raiva e todo este sentimentalismo pró-autoritarismo, tornou-se impossível acompanhar e numerar todos os casos que provam a progressiva podridão do sistema democrático e da política. Contudo, na minha (e na de 37% dos portugueses) singela opinião, a única solução só pode ser resolver os problemas da democracia, em democracia, e não entregar o nosso destino a um homem que, por sério que seja, não pode ter os destinos de um país inteiramente no seu regaço.

Ventura fará tudo para encarnar esse homem e pintar a imagem de sucessor natural da ideologia e do regime de António de Oliveira Salazar, mas não conseguirá esconder que é mais podre que qualquer outro representante político, e quem não o vê é quem está cego de raiva, cego de tudo, e não percebe que não há homem nenhum neste planeta que seja capaz de dizer que é incorruptível, nem quem escreve estas linhas nem ninguém.

Respeitemos sempre a democracia e saibamos fazer dela aquilo que é: a melhor solução possível. Os erros do passado é aí que devem permanecer, nunca esquecidos mas nunca repetidos, e cairá nas nossas mãos tomar essa decisão. 

 

Coitadinho
do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...

Bebe a verdade
E a liberdade.
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.

Fernando Pessoa no poema "António de Oliveira Salazar"

17 de Junho, 2021

Bo e a comédia depressiva

Bo Burnham, um comediante americano que se iniciou em 2006 ao leme da nova geração de youtubers e que ao longo destes anos se tem tornado num dos mais enigmáticos e carismáticos intérpretes nessa complexa arte de fazer rir, lançou este ano o seu especial da Netflix intitulado de Inside, pelo contexto em que foi realizado: sozinho no quarto, em plena pandemia, junto com os seus pensamentos ruminantes e todas as questões e questiúnculas que inundam um cérebro que pensa demasiado. Tudo misturado entre músicas reais demais e piadas tão certeiras que deixam, por vezes, de ser piadas. 

Posso dizer que fiquei fascinado com este Inside apesar de, previamente, pouco saber deste comediante excepto um ou outro vídeo mais engraçado no Youtube. 

Burnham parece-me um comediante típico, inundado de questões, observações, críticas e opiniões, mas que deu um passo ligeiramente à frente e abriu a porta para a sinceridade suprema.

If you wake up in a house that's full of smoke
Don't panic, call me and I'll tell you a joke

Bo parece apostado em, acima de tudo, ridicularizar o papel desses mesmos comediantes, pondo-se a ele mesmo no centro do absurdo, gozando com a inutilidade que por vezes parece fazer da comédia uma coisa pequena, supérflua e fútil. "All eyes on me" é uma das músicas que ele interpreta, gozando precisamente com o egocentrismo em que qualquer comediante acaba por redundar. 

Todas estas questões ganham outra importância quando milhões de pessoas morreram nos últimos anos devido a uma pandemia e em que nos vimos forçados a questionar tudo. A depressão é fácil de se instalar. Diz ele:

The world is changing
The planet's heating up
What the fuck is going on? 
Rearranging
It's like everything happened all at once
Um, what the fuck is going on? 

The people rising in the streets
The war, the drought
The more I look, the more I see nothing to joke about
Is comedy over?
Should I leave you alone?
'Cause, really, who's gonna go for joking at a time like this?
Should I be joking at a time like this?

Há certamente laivos de egocentrismo neste tipo de comédia e essa será porventura a maior crítica que receberá Bo por este seu especial. Contudo, onde alguns verão egocentrismo ou falsa modéstia, eu vejo uma inteligência acima da média que o faz questionar coisas como a manipulação das mentes de milhões de pessoas por empresas tecnológicas que cada vez mais nos parecem controlar como marionetas, a fortuna surreal de Jeff Bezos ou a comunicação digital,  passando pela sátira a coisas como as análises das análises que hoje são feitas por todo o lado (num sketch soberbo em que se põe a criticar a sua crítica da sua crítica a um vídeo). 

Acima de tudo, aquilo que mais me marca neste Inside é a junção entre uma comédia observacional e auto-reflexiva em tempos tão peculiares como este que vivemos, com os tiques depressivos e hiperrealistas que, a meu ver, definem boa parte da geração de Bo. Os millennials, geração em que também me insiro, é um grupo etário muito específico que cresceu sob um manto de altíssimas expectativas e com muito menos dificuldades que as gerações anteriores e que se vê, passadas duas crises e uma pandemia, num marasmo económico e social que nenhum mestrado ou doutoramento pode solucionar. A verdade é que muitos de nós têm uma vida mais fácil que a dos nossos pais, que temos a Internet que tudo mudou e facilitou, é certo que temos o mundo a nossos pés, mas também é certo que em muitos casos ganhamos o mesmo ou menos que os nossos pais e que temos acesso e tempo para nos questionarmos sobre muitas coisas para os quais os nossos pais e avós, por vidas mais difíceis, não tinham disponibilidade. Num mundo que mais barato e pacífico não parece estar, em que a democracia como sistema político passa por vários ataques globais e em que os ideais progressistas com os quais muitos de nós nos habituámos a ver como intocáveis ao longo da infância e juventude, afinal não o são assim tanto. 

A geração millennial é tudo isto, um conjunto estranho de gente que já não é criança, que teve tudo o que quis, que tem habilitações mas que, por saber de tudo na Wikipédia, não pode estar absolutamente feliz. 

Dando as boas-vindas à Internet e mostrando o poder de absorção que ela tem, canta ele, naquela que me ficou como a frase mais marcante :

Could I interest you in everything all of the time?
A little bit of everything all of the time
Apathy's a tragedy, and boredom is a crime

 

Parece-me que Bo Burnham, neste Inside, conseguiu pôr isso tudo em hora e meia, conseguiu descrever o ridículo da comédia, da música, do mundo, de toda uma geração e do próprio entretenimento em tempos em que basta passar um dedo num ecrã e ver, por exemplo, que há países (pobres, claro) literalmente a desaparecer pelo aumento do nível dos mares. 

You say the ocean's rising like I give a shit
You say the whole world's ending, honey, it already did
You're not gonna slow it, Heaven knows you tried
Got it? Good, now get inside. 

No final de contas, o mundo é tudo menos coisa com que se brinque, embora rirmo-nos seja, em última instância, a melhor e mais pura coisa que podemos experienciar.

Rir será sempre a única solução, a única hipótese que temos de acertar contas com o mundo.