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Vilipêndio

Vilipêndio

24 de Janeiro, 2021

Quase um ano

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Sinto um falhanço correr-me pelas veias, uma sensação de tarefa não cumprida e uma vontade enorme de gritar.

Apetece-me gritar.

Tivémos quase um ano para antecipar aquele que todos (tanto nós como os especialistas, e até mesmo os neo-especialistas-de-tudo) previam como um dos invernos mais exigentes dos últimos anos. Tivemos quase um ano para mudar hábitos, não todos, ninguém nos pediu para mudar de clube, adorar outro Deus ou passar a comer favas e iscas todos os dias. Tínhamos que mudar, e apenas temporariamente, aqueles hábitos que ao longo do ano passado nos fomos apercebendo que podiam levar a um aumento dos contágios.

Tivémos quase um ano para perceber que havia uma grande probabilidade de, nesta fase da pandemia, as escolas terem que fechar. 

Tivémos quase um ano para perceber que votar presencialmente numas presidenciais em pleno auge do inverno e da pandemia era capaz de não ser a melhor ideia do mundo.

Tivémos quase um ano para entender que, quanto mais rápido levássemos tudo isto a sério, mais rapidamente a vida regressaria ao normal e a economia recuperaria todos os meses perdidos que já leva. 

Tivémos quase um ano para muita coisa.

E pouco fizemos. Os governantes que, ao invés de governarem, reagem e todos nós que, ao invés de espírito crítico e de sacrifício, apresentamos laivos de egoísmo que, com o desafio que o país (e o mundo) enfrenta, pareceram o azeite na água: veio tudo ao de cima.

Agora, temos uma economia paralisada, gente que por esse motivo passa fome e não paga a conta da luz, temos hospitais no limite, profissionais de saúde completamente esgotados e traumatizados, um país parado. Um país falhado. Conseguimos tudo isto. 

Enquanto um determinado hospital aproxima-se do seu limite e médicos lá dentro decidem quais dos doentes vão efectivamente apostar em tratar, o café em frente ao hospital tem o seu dono que acha que isto tudo é um bocado exagerado e que leu um post no Facebook de um primo que diz que afinal até temos menos internados que o normal.

Numa mesma rua, no mesmo prédio, podem viver duas realidades distintas, dois mundos que não se tocam. O homem que perdeu o seu negócio com o agravar desta pandemia e o vizinho de cima que, apesar disso, não consegue deixar de ir beber o seu aperitivo em frente a seis pessoas com a máscara presa ao pescoço.

Num espaço de metros pode viver uma enfermeira que descansa, de rastos, de mais uma noite caótica no seu hospital perto do limite de capacidade, enquanto lida com todo o trauma que foi o ano passado e que está a ser este novo ano, enquanto no andar de cima vive uma moça dos seus vinte e poucos que está farta de não poder viajar e que já não acha piada nenhuma a esta pandemia porque já nem se lembra do que é dançar numa discoteca cheia.

É esta a nossa sociedade, agora. O sentido de comunidade, empatia e de objectivo comum parecem animal em vias de extinção. 

As nossas vidas já não se tocam e cada vez menos.

As dores de uns deixaram de ser as dores de todos. 

A comunidade passou a ser várias comunidades. A minha comunidade e a tua. A minha vida e a tua.

Com tanto egoísmo, e se olharmos para esta pandemia como um teste, acho que estamos a fazer tudo é para acabarmos todos. E, se assim, fosse, quiçá até merecíamos.

O Homem sempre foi um ser social, de comunidade. Quando deixamos de ter objectivos comuns, ideais partilhados e visões conjuntas, a nossa sociedade falha.

Penso que a nossa sociedade falhou e, agora, temos um enorme problema para resolver. Quanto mais depressa aceitarmos isso, melhor.

Entretanto, há que ir votar. 

Como alguém que sempre vota e sempre votou, tenho um sentimento único em relação a estas eleições. Por um lado, sinto uma enorme obrigação de o fazer. Por outro, estando em 2021, não consigo aceitar que este país, nestas condições únicas, não tenha oferecido possibilidades de voto diferenciadas, atempadas, organizadas e, agora, pede a um país que saia de casa e faça a "festa da Democracia". 

Ainda assim, vou ver se encontro por lá o candidato com o nome de EMPATIA, CORAGEM E BOM-SENSO.

20 de Janeiro, 2021

O erro da esquerda

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Nuno Veiga / LUSA

Se seguir os caminhos normais, as nomenclaturas corriqueiras, se tiver em conta ambos os lados de uma barricada imaginária, diria que desde cedo sei que sou de esquerda. Mesmo que seja esquerda de nada. 

Alinho-me à esquerda como me alinho para o Benfica, para séries de crimes e para uma bela dourada grelhada.

Mas se lados temos de escolher, o meu está escolhido. Num momento em que parece que do outro lado da barricada, o lado da direita, existe um progressivo desvio ainda mais para a direita, as vozes que se levantam são cada vez mais e mais altas. 

E, portanto, agora é contra Ventura, marchar, marchar.

É a isto que se irá propôr, em princípio, qualquer pessoa que, mesmo não se autoidentificando como 'de esquerda', é um ser humano decente, respeitador do próximo e defensor dos ideais de democracia e igualdade.

Mas é importante não cometer um erro grave quando se discute a ascensão dos populismos de extrema direita e das suas perigosas ligações a personagens de áreas pouco saudáveis da nossa sociedade.

O erro consiste em achar que não assentam num pequena base de verdade. É ignorar que, por trás do manto de raiva e ódio, existem motivos reais. O fundamento para o voto de raiva em Ventura é consequência de um desgaste enorme com os casos Sócrates, Ricardo Salgado, BES, TAP, entre outros - inclusivé, o muito badalado assunto da comunidade cigana, assunto que toda a esquerda (e a nossa sociedade no geral) decidiu ignorar ao longo de anos por não saber ouvir os problemas das pessoas reais e o qual dá a ganhar imensos votos a Ventura, porque não tem que ser tabu que existem, em determinados pontos do país, problemas sérios entre a comunidade cigana e o resto da população. Não discriminar não significa não criticar. E foi isso que o Chega soube fazer de forma bastante inteligente e brejeira. 

O populismo não nasce do ar, não se abrem cabeças a pessoas e se lhes põem lá dentro ideais racistas ou xenófobos. O populismo ganha força exactamente por ouvir as dores de uma parte significativa da população, mesmo de uma população que não se identifica totalmente com os ideias da extrema direita. O que faz a seguir é distorcer muita da realidade e oferecer uma salvação para todo esse desastre - ou para acabar com a escumalha, como diria Ventura. E a solução recai numa só pessoa, nesse culto de personalidade que se está a tornar o seu partido.

Será um erro ignorar que há muita coisa errada neste país. Como terrível exemplo, vemos hoje, no trágico e anunciado auge de uma pandemia, que somos dos países com menor número de camas de Cuidados Intensivos per capita na Europa. 

Podia-se fazer muito melhor em muitos sítios, a corrupção existe e não deve ser tabu, e cada vez mais gente acha que se brinca com o seu dinheiro, com o dinheiro que todos os meses desconta do seu já parco salário para o Estado. 

Ignorar tudo isso será oferecer votos a André Ventura.

15 de Janeiro, 2021

Política twitteriana

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Depois de terminados os debates presidenciais cá pela nossa lusitana terra e depois de vermos o Capitólio americano ser invadido por uma manada recalcada, acérrimos utilizadores de caixas de comentários na Internet, todos eles encapsulados doentiamente numa miríade de teorias da conspiração, tivemos a imagem do que serão as nossas sociedades daqui para a frente: um Twitter da vida real. Uma gritaria constante, uma luta na lama desprovida de conteúdo significativo, seja político, científico, social, ou qualquer outra coisa. Apenas discussão grosseira, simplória e assente maioritariamente em especulações e soundbites.

As redes sociais foram um passo enorme na nossa forma de viver a nossa sociedade, desde as relações interpessoais (onde tiveram um papel bastante positivo de aproximação entre todos nós) à forma como lidamos com a imprensa, o andar diário do mundo, as notícias que fazem o dia-a-dia. Foram, também, uma mudança radical na forma como olhamos para esse mesmo mundo. O barulho começou a ser tremendo, as fontes - sejam elas fidedignas ou não -proliferam de forma exponencial, há um canto qualquer da Internet sempre pronto a dar-nos validação, seja numa matéria pequena e ínfima como num facto científico.

E há toda uma geração de políticos a tirar enorme partido disso, fazendo uso de uma brilhante esperteza e alimentados por sentimentos muito pouco saudáveis para as nossas sociedades. 

Agora, ganha quem fala mais alto, quem for o mais polémico, mais disruptivo, quem tiver mais seguidores e quem souber estar por cima nas trends do Twitter.

Num mundo cada vez mais barulhento, mais interligado, a política não conseguiu manter-se à parte disso.

Hoje ao voltar de uma noite de trabalho, tinha o rádio do carro na TSF. Discutia-se as presidenciais e, na hora de falar de Marisa Matias, a primeira coisa que foi dita incidia sobre uma hashtag que, ontem, assumiu o primeiro lugar das trends em Portugal. Era apontado como o primeiro grande ponto positivo da campanha de Marisa.

Ora, isto não é política ao que me parece. Não é visão estratégica de nada, não é ideal, visão, não é nada. É barulho. É vir ao de cima na lama.

É certo que quase sempre foi com o mesmo candidato, mas muitos debates destas presidenciais pareceram conversas de Twitter. Ironicamente, ou não, foram também os debates mais vistos. Porque é isso que cada vez mais queremos. Não é conversa civilizada, estruturada e, por acréscimo, aborrecida. Queremos barulho porque nos tornaram viciados nisso. 

Há quem me chame velho do Restelo. Mas eu preferia o mundo quando ele era menos barulhento, quando não existiam todas as opiniões dentro de cada um de nós, quando não éramos todos especialistas de tudo.

Preferia o mundo quando a ciência era dos cientistas, a política dos políticos, o jornalismo dos jornalistas e quando não andávamos todos atrás de coisas com o nome de trends

03 de Janeiro, 2021

O melhor de 2020

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Agora que o ano mudou, que o zero passou a um e que 2020 se tornou 2021, é hora de fazer balanços.

Podia dizer que o melhor que 2020 trouxe foi o seu acabar mas isso era demasiado óbvio. Em 365 dias houve muita coisa e se houve ano preenchido de histórias, acontecimentos, foi este que agora acabou.

2020 foi um ano chave, histórico, um daqueles anos que se pode orgulhar de ir parar aos livros de História do futuro e que irá ser objecto de estudo por parte de meninos e graúdos em escolas e universidades.

Mas, como em todos os anos, não deixei de ler os meus livros, ver as minhas séries e ler as minhas notícias. Por isso, e como vivemos na era das opiniões para todos os gostos, deixo aqui o que de melhor me passou pelas vistas:

MELHOR LIVRO:

Autismo (Valério Romão, Abysmo, 2012)

Dos 8 livros que li este ano (menos que o costume, mas 2020 foi ano de tudo de pernas para o ar) este foi, certamente o que mais me marcou.

Autismo é um relato dolorosamente real e tremendamente humano de um casal que tenta criar o seu filho autista e tenta, ao mesmo tempo, lutar pela sua própria felicidade e pelos seus sonhos. É um livro com capítulos e passagens que me deixaram atónito, com o ar preso nos pulmões, frases e diálogos que nos fazem pousar o livro durante uns segundos e pensar na nossa própria existência. É um livro que, em certa medida, nos ridiculariza. A nós e aos mil e um problemas que vamos arranjando na nossa vida sem que tenhamos noção de muitos outros que não sofremos e que são de um nível infinitamente mais doloroso, inexplicável e revoltante.

A brilhante escrita de Valério Romão (que, admito, desconhecia) tornou-me, logo à segunda página, um fã. Valério junta uma eloquência descritiva soberba com um discurso coloquial de uma forma bastante pertinente. Há passagens neste livro que parecem relatos reais de diálogos e não apenas diálogos, ficcionados e imaginados.

Este é um livro real, demasiado real. E maravilhosamente bem escrito.

MELHOR SÉRIE:

The Comey Rule, com Jeff Daniels e Brendan Gleeson

2020 não foi um ano repleto de boas séries. Ou assim foi, pelo menos, para mim. 

Jeff Daniels interpreta o antigo Director do FBI, James Comey, numa mini-série da Showtime que retrata os momentos antes da eleição de Donald Trump em 2016 e os meses imediatamente a seguir. Não entrando em pormenores políticos nesta análise, resta-me apenas elogiar as interpretações tanto de Daniels como de Gleeson (que dá corpo a um Trump vil, abjecto, ditatorial, entre cem outros objectivos) e a mensagem que consegue passar daquilo que foi o terramoto Trump. A partir do momento em que entra na Casa Branca, as institiuições e a própria democracia americana passam para segundo plano. Para Trump interessa apenas uma coisa, coisa essa que Comey, por colocar a instituição FBI e a democracia acima de tudo, não lhe consegue dar: lealdade máxima e incondicional.

Uma série que assusta porque consegue transmitir fielmente aquilo que estes novos populistas trazem às nossas democracias: uma podridão indescritível.

 

MELHOR NOTÍCIA:

Papa defende união civil de homossexuais e critica discriminação

Esta, na minha opinião, foi a notícia mais positiva no annus horribilis que acabou. O facto do líder da Igreja Católica ter tomado este passo, infelizmente, não significa que toda a Igreja esteja no caminho do progresso nem que a luta pelos direitos dos homossexuais seja história do passado. Infelizmente, nada disso é verdade. Contudo, o (gigante) passo que Francisco deu ao anunciar o seu apoio à união civil homossexual é de louvar e de nos deixar com um calor reconfortante, mais ainda numa época em que assistimos ao renascer de ideais ultraconservadores e em que muitos políticos e partidos do Ocidente se apoiam em retóricas racistas, xenófobas, machistas e, também, homofóbicas.

O Papa Francisco é, de facto, uma luz no túnel escuro que é a Igreja Católia. É a prova que a Igreja não tem necessariamente de permanecer congelada no passado para manter a sua mensagem e valores centrais. A Igreja pode (e deve) adaptar-se aos tempos em que se encontra, para não correr o risco de, daqui a umas gerações, ver-se quase desaparecer ou tornar-se insignificante e apenas representativa de uma franja das sociedades.

 

MELHOR IMAGEM:

Foto de Angelos Tzortzinis - AFP -  Getty Images

Esta foto de uma criança no campo de refugiados em Moria, tirada após a polícia ter disparado gás lacrimogéneo contra um grupo de refugiados que se manifestava contra o novo campo a ser construído após a quase total destruição do anterior pelo fogo, mostra várias coisas, todas elas difíceis de lidar. Mostra, acima de tudo, que as nossas preocupações andam muito longe um dos outros. Uma criança não pode chorar desta forma. Uma criança não pode sentir nada do que este rapazinho sentia neste momento. Uma criança não pode passar por nada do que ele - e todos os outros - já passaram. Esta realidade já não é no longínquo Médio Oriente ou na Coreia do Norte. É às portas da Europa. 

Num ano em que vimos o melhor que podemos fazer uns pelos outros, também nos apercebemos mais visivelmente do mal que podemos fazer uns aos outros, por escolhermos ignorar, por decidirmos que aquilo que acontece fora do nosso bairro, do nosso quintal, das nossas vistas, não tem de ser preocupação nossa. As terríveis consequências que resultam deste nosso crescente umbiguismo estão à vista de todos.

 

Mas que venha 2021 e o seu novo aroma. Enquanto o pudermos sentir - ao aroma - é bom: ele pode não durar muito tempo. Seja por percebermos que pouco ou nada muda quando Dezembro passa a Janeiro ou então porque o raio do Covid nos levou o cheiro.

Bom ano a todos os blogueiros do Sapo, um bem haja e continuem a escrever!