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Vilipêndio

Vilipêndio

31 de Agosto, 2020

Parar para não pensar

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É costume dizer-se, em momentos pontuais da nossa vida, que precisamos de parar para pensar. Pois bem, há quem sofra de momento inverso a esse. Há quem precise de parar para não pensar. 

Sou um desses casos. 

Por vezes, é preciso parar a engrenagem que dá origem ao pensamento. É preciso deixar de querer, de perguntar, de ansiar e ouvir apenas. Ouvir tudo mas não fazer caso de nada. Ouvir tudo como se a distância entre os dois ouvidos fosse um auto-estrada sem portagens, um caminho cujo percurso não encontra qualquer resistência. Ouvir tudo e apenas isso. 

A nossa mente acelera à velocidade da nossa vida, acelera-se com o passar das vivências, das memórias, de todos os eventos, encontros e desencontros. Tudo o que respiramos, que vimos, que ouvimos e tocamos, tudo o que faz estremecer uma qualquer célula cá dentro, tudo isso acelera a mente. Se não for bem treinada, uma mente atenta não se cala. 

E isso pode ser problemático. Podem ler-se livros a mais, se de todos os livros se fizer uma experiência vivida na pele e na alma, pode viver-se demais, se de tudo o que nos acontecer fizermos um enredo de questões e contra-questões. Pode pensar-se demais. E isso aleija. Dizem que estraga a pele, também. 

Preciso de parar, e começar a respirar e sentir. Viver, apenas, pode ser suficiente.   

Sentar em frente ao lago e, tal como o Reis, dedicar-me apenas a ver o rio passar. É esse o objectivo, agora. Não sempre, mas por vezes. Não todos os dias, algumas horas de vez em quando. 

Parar para não pensar é passo inegável para uma vida saudável neste mundo que se criou à nossa frente, cheio de afazeres e experiências a viver, um mundo que parece que vive sempre dois passos à frente do seu tempo.

Desacelerar é, agora, o mote. 

25 de Agosto, 2020

Um concerto covidiano

 

Apesar de nunca me ter enclausurado em casa, de não ter conseguido mudar a minha rotina de trabalho - como muita gente ficou a perceber com o estado de Emergência, nem todos podem levar o trabalho para casa -, o que este bandalho chamado Covid-19 conseguiu fazer foi tirar-me os concertos. A mim e a todos os que dele precisam para viver e sobreviver, que não são poucos.

E , agora, quando o mundo parece querer começar a dar passos numa nova realidade, os concertos voltaram e as salas voltaram-se a abrir. 

Tinha alguma expectativa para ir ver o Salvador Sobral no Maria de Matos, ontem. Não por nunca o ter visto - não vislumbro muitos músicos mais versáteis e irreverentes do que ele, em Portugal -  mas sim por este mundo pós-covidiano. Ou apenas covidiano, ainda falta muito para um pós-tudo isto.

Houve filas ordenadas e espaçadas, entrada bastante controlada e uma pessoa à vez, álcool-gel para todos, dentro da sala os lugares eram em grupos de dois, devidamente espaçados entre si. Quando a festa acabou, a saída foi por filas, seguindo ordens específicas, e toda ela ordenadissima também. 

Admito que ver um concerto com um pedaço de pano a esfregar-se na minha face não é a melhor experiência que se pode ter na vida. Admito que houve momentos em que me apeteceu tirá-la. Admito, assim como muita gente admitiria. Bastou ver a satisfação de todos quando, após a saída e a chegada à rua, rapidamente a tiraram como se abraçando de novo o ar e dizendo olá ao mundo outra vez. 

Parece que nos tornámos um país de gente civilizada, será? Ou foi apenas uma amostra muito específica e reduzida? Será que já éramos civilizados e não sabíamos? O Salvador, como entertainer que é, soube tirar proveito disso e fez questão de dizer que tinha, no dia anterior, dado um concerto em Espanha onde notou pouca consciência para a pandemia, com um "camarim com 40 pessoas, muitas sem máscara". Depois disso, sublinhou que, por cá, não é isso que vê, e que há mais cuidados e atenção. 

É assim que se ganha uma sala em Portugal. É fácil, não é preciso mais, basta dizer "somos melhores que os espanhóis". E, sendo verdade, ainda melhor. 

 

Estou pronto para ir ao próximo concerto covidiano, diria. Por mais estranho que seja. 

O mundo assim como parou súbita e drasticamente, também regressou e nós com ele.

Não sabemos para onde vamos, mas, de qualquer das maneiras, nós também nunca soubémos para onde íamos.

 

20 de Agosto, 2020

O discurso de Obama

 

Este discurso de Obama, parte da Convenção do Partido Democrata norte-americano deste ano, devia ser xarope a tomar uma vez ao dia por todos nós, durante um período de tempo.

Interessa não só os americanos, que, ao sofrerem de duas doenças em simultâneo - o coronavírus e o vírus do populismo racista -, nos deram amostra do que pode ser o futuro de muitos outros lugares deste mundo se se deixarem cair no mesmo erro, mas interessa também a todos nós, cidadãos de um mundo cada vez maior e cada vez mais pequeno, tão pequeno que cabe no bolso de uns calções e na palma de uma mão. 

As recentes ameaças a representantes políticos por parte de elementos da extrema direita em Portugal é só um sintoma de uma doença silenciosa mas que começa, agora, a dar sinais claros e visíveis. A maleita estava já presente no nosso sistema, contudo dava apenas sinais pouco evidentes, nas franjas da sociedade. Com o advento das redes sociais e da utilização em massa das mesmas, o que aconteceu foi a agudização gradual desta doença. No cacofónico e caótico mundo da Internet, tudo é verdade até não ser, tudo é o que é e o que nunca foi. Esta doença, tal como a maioria delas, só tem tendência a proliferar e a agravar-se, se não for combatida eficazmente. 

Vendo como o Brasil elegeu o seu pseudo-ditador, vendo como os valores da democracia tradicional deixaram de ser um bem adquirido, inegociável e imortal e, inclusive, vendo como nós portugueses ostentamos a nossa versão especial de um mini-Trump, uma personagem que passou, há algum tempo, de estar apenas à espreita e entrou, de facto, pelas portas da política portuguesa, vendo tudo isto... não há como não estar preocupado. 

Em muitas questões, o vértice essencial não é se se é de esquerda ou de direita, mas sim do partido do bom senso. Quem acena, hoje, com ideais que foram combatidos ao longo de décadas por homens e mulheres de todos os cantos do planeta, é porque para além de ter esquecido, algures foi esquecido. Ninguém pode, em sua boa mente e vivência, agarrar-se a um racismo puro, a uma pequenez de espírito contrária à essência humana. É básico demais para uma sociedade que tem evoluído ao longo de séculos e séculos. 

Há valores que ao nascerem, ao serem nutridos e aceites, nunca devem morrer. 

A decência é um deles. 

Não deixemos que o barulho nos faça esquecer isso, não permitamos que a polarização que trouxe a Internet às nossas vidas nos mate as vistas mais largas, com maior significado.

A emoção que Obama transmite, mais visível na parte final do discurso, é a de um Presidente que conhece as suas falhas mas que sabe que o perigo e incompetência que Trump representa para os EUA e o Ocidente é assinalavelmente maior que qualquer erro que possa ter cometido. É de um homem zangado mas, também, assustado. 

A mentira, o negacionismo e a divisão nunca foram remédio para nada, ao contrário deste discurso de Obama. 

Sempre foi hora de andar para a frente, mas agora mais do que nunca.