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Vilipêndio

Vilipêndio

17 de Fevereiro, 2020

Raiva - desporto nacional

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Embora o racismo exista - e bem - em Portugal, o caso de Marega parece-me ser mais complexo do que isso.

Muitos dos que gritaram de forma racista contra o jogador do Porto se calhar, cá fora, até se dão de forma normal com negros, azuis e amarelos. O que se passa é o que sente uma pessoa a entrar num estádio.

O adepto não vai apreciar um desporto. Isso desvirtuou-se completamente. O adepto vai para zona de guerra onde a sua equipa tem de levar a melhor. E se não levar, o adepto também está lá para lhe cair em cima. Já nem sequer é adepto incondicional. É adepto da confusão, da gritaria. Quanto à terceira equipa, os infelizes árbitros, esses nem ao primeiro minuto chegam. Ainda não começou o "espectáculo" e já são para cima de filhos de tudo. 

Passa-se a semana a discutir vertentes do futebol que chegam ao ridículo. Gosto particularmente dos repórteres em frente a unidades hoteleiras para acompanhar as importantes chegadas de um autocarro com jogadores. Ou das imagens ampliadas com zoom para se perceber se o quinto metatarso do avançado estava ou não depois da linha. Como sabemos, isto é tudo normal e faz sentido. 

Mas, como exemplo máximo de qual é verdadeiramente o desporto nacional - a raiva -, nunca esquecerei quando, há uns anos, fui a Alvalade (com a camisola do Benfica bem escondida porque guerra é guerra) e vi uma menina com os seus 5 anos, acompanhada do pai, ouvir que era uma puta. De mão dada com o pai que, por achar que não tinha que esconder a camisola do Benfica da rapariga, ficou completamente petrificado com a cena.

Desde aí percebi o que se passa no futebol português. Quem pense que o caso Marega é apenas racismo está a ver muito mal tudo isto. Alcochete não foi racismo, esta menina de 5 anos que apenas ia ver um jogo de futebol com o pai, não foi racismo.

Enquanto o futebol for mais do que os 90 minutos que se jogam, não sei do que estamos à espera que mude.

E a culpa não é só dos que gritam coisas aberrantes, é de todos nós, seja por darmos razão aos canais para terem 200 horas de conversa por semana, seja por estarmos em casa, ao lado dos nossos filhos, a chamar nomes a uma pessoa na televisão.

Já não há sequer prazer em nada do que envolve o futebol. 

Ou corre bem, e alivia momentaneamente as dores que nos carregam as costas, ou corre mal e é uma confirmação que isto é tudo uma cambada de filhos da puta. E lá vai uma cadeira e um "preto de merda" nisso tudo.

 

Ilustração: Art by Guy Denning

 

07 de Fevereiro, 2020

"A vida é pequena"

 

Quem o diz não sou eu, é o Marco António. Há uns dias no trabalho, corria a madrugada, quando o vejo. Depois dos cumprimentos, diz-me que naquele dia lhe surgira, numa descerebração típica de uma fila de trânsito, essa frase e que, desde aí, não lhe saía da cabeça:

A vida é pequena.

Estranhamente - ou não -, ficou-me também ela a badalar algures numa zona do córtex que regista a informação importante. E esta era, de facto, importante:

A vida é pequena. 

Comecei a tocar-lhe - no seu significado -, e a cada passo ia-me parecendo mais acertada.

A vida é pequena não em tamanho ou duração. Isso já todos sabemos. Essas métricas, simples e ordinárias, são mais do que óbvias: é suficiente olhar para o céu, ou para um mapa, ou simplesmente fechar os olhos e pensar um pouco, fazer a matéria que nos ocupa o consciente divagar por aí.

Desde que soubémos que afinal este planeta que habitamos não é centro de nada, fomo-nos habituando à ideia de que afinal não somos assim tão especiais. Desde que nos começámos a aperceber que o cosmos é de uma dimensão colossal e que, por isso, tal como este planeta que habitamos, muitos outros existem, que nos começámos a sentir gradualmente mais pequenos. Portanto, que a vida é pequena em tamanho ou duração é facto inegável já vai para uns bons anos. Já nos está enraízado na pele, mesmo que não o queiramos enfrentar.

O que a frase do Marco nos diz é que ela é pequena mas em todos os outros aspectos que não são mensuráveis. Porventura ele terá outro significado para ela, as frases, ou as mil e uma maneiras como lidamos com ela, são de cada um. 

O romantismo tolo que nos obriga a dar um sentido à nossa existência não é mais do que uma infundada hierarquização de acontecimentos, que nos faz acreditar que uma das ondas - das milhares - que chegam à areia numa praia ao longo de um dia tem menos importância do que ,a por exemplo, a descoberta da gravidade. Uma é fugaz, efémera, vulgar. A outra é um acontecimento histórico. O que valem, individualmente, como eventos aleatórios é provavelmente o mesmo: nada. 

São coisas que acontecem. É o caos a ser caos. 

Tudo é pequeno.

Não há vida nenhuma que tenha a capacidade de mudar as leis da física, a exorbitante dimensão do universo ou a imponente sensação de esmagamento que tem que sentir alguém que ocupa uma área, neste infinito todo, equivalente a um corpo. É só um corpo que vive coisas, com o intuito de alimentar-se, poder procriar e sobreviver. 

Por mais que se viva uma vida, ela nunca passará de uma amostra infinitesimal de todas as possibilidades. Nunca será mais que uma mera gota: assim como podemos dizer que é unica, também podemos dizer que é pequeníssima.

A vida é pequena, sim. 

É pequena em significado e importância. Pequena em valor, mesmo.  

Quiçá se possa vislumbrar uma beleza última em tudo isto ou quiçá a beleza nem sequer existe e nós somos apenas um macaco que tenha evoluído para ter memórias e um consciente que é pouco consciente de si e do que o rodeia. Quiçá isto seja uma simulação de computador ou um jogo de vídeo de um adolescente a viver numa outra dimensão e nós sejamos todos os seus avatares. 

A ficção científica só o é até ser comprovada.

Há frases assim, como esta do Marco, que fazem a ilusão de um homem tremer.