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Vilipêndio

Vilipêndio

10 de Fevereiro, 2018

Quando a noite é um sítio frio

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Madrugada de quarta para quinta-feira. A noite é a mais fria dos últimos meses, o mercúrio pouco sobe dos 0º C e o ar que vem da rua dói, queima, arreganha qualquer alma que não teve a sorte de estar entre cobertores e mantas. Estamos nas Urgências de um hospital central em Lisboa, local que tem o dom de ser tudo e mais alguma coisa, inclusivamente objecto de histórias de terror e de notícias que têm pouca informação e muito voyeurismo.

As salas de espera estão vazias, muitas vezes assim o é quando a noite é quem manda. Felizmente – diga-se - para quem não teve a sorte de estar entre cobertores e mantas. Inevitavelmente acaba sempre por chegar alguém, que pode trazer consigo uma de milhões de histórias. A casa não tem hora de fecho nem de descanso, e um sítio que se dispõe a receber qualquer pessoa a necessitar de cuidados médicos só pode ser palco das mais extraordinárias e marcantes experiências humanas. É isso que muitas vezes acontece quando a realidade simplesmente acontece, sem filtros nem edições, sem fotografias nem vídeos.

A quem chega é-lhe dado pulseira verde, a mais leve. Visto que o tempo (que ali sempre corre mais rápido) assim o permitiu, antes sequer de ser chamado foi possível ver o historial de idas á Urgência. Depois s de uma leitura na diagonal, percebe-se que a vida é de alguma diligência e afectada por doenças infecciosas. É melhor não se saber mais para já, porque são 4 da manhã e a noite é um sítio gelado. À primeira chamada, não existe resposta do doente. À segunda, igual. Decide-se ir procurar activamente o doente pelas salas de espera. Nas muitas e geladas salas de espera.

O doente, que tinha vindo com queixas de cefaleias “já desde há muito tempo”, estava deitado a dormir, com um casaco a fazer de cobertor, em duas frias cadeiras da sala de espera principal, imperturbável perante qualquer barulho. A doença dele naquela noite, de todas as que tristemente já leva consigo, foi apenas o frio, a falta de um sítio quente que lhe permita fechar os olhos entre todo o tremer de um corpo gélido. E esse sítio ali estava, de portas abertas e com um tecto que deixa o inverno do outro lado. Ninguém se opôs, obviamente. Quando a noite é um sítio frio, o melhor calor é o humano.