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Vilipêndio

Vilipêndio

27 de Janeiro, 2017

Afinal, é mesmo verdade.

 

 Ilustração de Angineer Ang

  

No ínicio era só uma brincadeira.

Mas cedo se percebeu que a brincadeira era teimosa e, por isso, tornou-se uma dúvida.

Quando o tempo passou e nada mudou, a dúvida transformou-se num pequeno susto.

Susto esse que se tornou numa certeza, pouco depois. 

Essa certeza é agora a nossa realidade.

E esta realidade, por ser assim, só pode ser brincadeira.

 

16 de Janeiro, 2017

De pés colados

slaveme.jpg

Ilustração Slave Me |  Christophe Marques  |  not_from   2017 |  instagram.com/not__from  | 

 

A escravidão

de estar parado,

iludido de caminho.

 

Esta prisão

sem corrente,

que se transveste

e nos faz acreditar em 

Liberdade.

 

Qual é mais inútil,

o escravo preso ao chão

ou o que tenta correr 

preso ao mesmo chão?

 

«

Salvem-nos

de cegarmos das vontades.

15 de Janeiro, 2017

BBC vs Daesh

A demonstração pela desconstrução. 

 

Num tempo em que, feliz e atempadamente, muito se fala do papel do humor (e dos seus limites) na cultura portuguesa, a BBC decide presentear-nos com um pedaço de genialidade. Perante um dos maiores absurdos que temos de encarar neste estranho tempo que é o nosso, esta pode perfeitamente ser a melhor arma que podemos usar. Uma simples piada. 

O humor é muitas coisas, mesmo não querendo ser nada. Ele não quer mudar vidas, ou mesmo qualquer vida, nem pretende mover este mundo ou, sequer, inventar novos. O humor não quer ganhar guerras nem teimas. Ainda assim, nos momentos em que consegue ser directo, simples e cru torna-se a melhor de todas as armas à nossa disposição. 

 

Esta foi a forma que a BBC encontrou de atingir o Daesh. Não derramou sangue, não deixou buracos no chão mas atingiu, em cheio, o coração do grupo terrorista. É um tremendo passo, porque as acções só se mudam depois de se mudarem as mentalidades.

06 de Janeiro, 2017

E a bola, meus senhores?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ao longo da distância que percorre a minha memória, o futebol sempre foi parte essencial. O Benfica impregnou-se em mim bem cedo, pelo que a sensação de ser benfiquista é das mais primitivas que tenho. Em criança, e como à grande maioria dos miúdos, o desporto tinha em mim uma enorme influência e acabou por ser determinante nesses ingénuos anos. Ser campeão europeu em França este ano representou um sonho cumprido, uma façanha inigualável e que havia de ser festejada e bem festejada. Um momento que entra directamente no leque das memórias a reter eternamente.

Contudo, dentro de portas, a situação que vive o nosso futebol actualmente é vergonhosamente diferente. Está a definhar à nossa frente, nas nossas televisões, nos nossos estádios, em todos aqueles lados onde o futebol devia voltar a ser apenas o futebol, uma festa. 

Não lhe faço o meu funeral pessoal ainda, não vou desistir, principalmente porque o Benfica é algo que nos entra e nos entra forte, mas o interesse é uma miragem daquilo que era expectável. Para quem apenas gostava de ver 11 homens a correr com outros 11 homens com uma bola pelo meio, o que se passa hoje é, no mínimo, desolador. Os 11 gajos são a quinta coisa mais importante no futebol neste momento, perdendo para o árbitro, as decisões do árbitro, os calções do árbitro e as refeições do árbitro. É só disso que se fala, é só isso que se discute, o árbitro passou a ser o centro de todo o jogo.

É doloroso para a alma pensar nos programas de debate futebolístico que a televisão conseguiu regurgitar nos últimos anos. É esse o ponto baixo, sem dúvida. O momento em que já vale tudo. Por motivos que sabemos, estes autênticos freak shows passaram a alimentar uma parte bastante significativa do debate desportivo no nosso país. E, sem darmos conta, o futebol perdeu-se ali no meio de Pedros Guerras, cuspidelas, câmaras de vigilância, pénaltis, e todas as coisas que não interessem por não serem uma bola a entrar numa baliza.

Depois do processo Apito Dourado e das preciosas escutas que este nos proporcionou (e que estão disponiveis para ouvir à distância de um querer), no momento em que toda a credibilidade caiu e tudo ficou ligeiramente mais transparente, o futebol português começou a morrer. O que se passa hoje é o resultado directo disso. A desconfiança, a postura de guerrilha, o desinteresse pelo jogo e a concentração total na actuação do árbitro contaminaram todo o ambiente à volta do jogo, e tudo isso está a matar o futebol português. 

Acho difícil que se reerga, pelo menos enquanto nós formos aquilo que sempre fomos: portugueses. 

 

 

03 de Janeiro, 2017

Mário Soares e a gripe

Duas entidades de foros totalmente opostos - por um lado, a infecção respiratória sazonal, por outro a ex-presidência da República - ocuparam, durante o tempo festivo que agora acaba, o topo das prioridades no que diz respeito à notícia em Portugal.

Passámos o Natal e o Ano Novo juntamente com o pobre porta-voz do Hospital da Cruz Vermelha, o homem com os óculos mais contextualizados com a moda que a televisão nos ofereceu nos últimos tempos. Todos os dias explanava a situação do ex-presidente da República, perante microfones esfomeados por um comunicado em que dizia que, por aquilo que todas as máquinas indicavam, Mário Soares estava vivo. Acrescentava depois que no dia seguinte, caso as máquinas continuassem a dizer o mesmo, ele iria dzier o mesmo também. De toda essa riqueza informativa, era possível, obviamente, extrair minutos largos de análises das mais diversas frentes, chegando-se inclusivamente à analise médico-cirúrgica.

Outra coisa que nos acompanhou nas festas natalícias foi um vírus, tão conhecido como infalível. Entope narizes e também, sabemos nós ha uns anos, urgências hospitalares. O fenómeno é sazonal, como são os grandes assuntos em Portugal. No fundo, a gripe ocupa no Inverno o lugar que é dos incêndios no Verão. O volume de atenção que se lhes confere, por um período de tempo, é ridiculamente desproporcional às medidas que se tomam no sentido de os evitar no ano a seguir. Mas as notícias fazem-se e reproduzem-se, para bem não sei de quem, para qual solução eu não consigo descorrer.

Em Portugal, passarem 365 dias mais se assemelha ao passar de 365 segundos. Bom ano para nós, ainda assim.

Imagem: Dosmosis, UK